quinta-feira, dezembro 21, 2006

Cegos

Estranha e nua sentei-me na mesa de um café. Não percebi as minhas unhas pintadas (vermelho) e mal notei o cego que tateava as minhas medidas, ao lado. Se ele me queria, não entendi. E também não o quis, não ali, não assim nua e densa. Era preciso estar leve como pluma leve pousa, como abelha em girassóis, era preciso o frescor da abelha no momento incerto. Instante raro de perceber sem ser notada era o que eu buscava por detrás dos meus óculos escuros. Ócios. Era como se eles me tornassem invisível: ali detrás podia ver a sinceridade da cidade escondida, aquilo que não se diz, sequer se pensa. Eu pensei tanto quanto um cão ao abanar o rabo e passei batido em brancas nuvens. Esqueci. E continuei ali. Nua. Estampadamente nua. Rodeada por cinzeiros e cigarros apagados, cafés fortes descendo pela goela fraca e empapuçada. Empapucei-me cedo. Então não havia mais espaço para o mundo dentro de mim.

Perdas e danos

Preciso precioso tempo e palavras perdidas à toa pelo ar conden-concentrado. Ouvido absolutamente límpido para não causar interferências largas. Passos de bêbado caolho entrecruzando a guia da calçada destruída. Em ruínas, cegos caminham caminho noite e vida afora, no escuro do dia que brilha sem se ver. Vendemo-nos em gatilhos e estouros sem som. Procura-se calor entre pernas moles que não firmam carinho, estagnam. Estagnamo-nos no amor, na desculpa de um companheiro tão solitário quanto nós mesmos. Solidões que se encontram, se penetram e não preenchem-se. Olha lá como eles caminham sem se notar. Tocam-se as mãos mas o áspero da pele morta não se faz perceber. Tocar sem sentir o outro é sintomático de uma civilização em cadências quietas e acobertadas. É preciso o amor tanto quanto o vazio de dentro fundo que nos move. A arte diminui, à medida em que não se vê as cores lá fora, o dia passando, a rua em eterno movimento de pés-anté-pés, de bundas justas que desfilam um rebolado intrigante. É preciso a arte tanto quanto o amanhecer infinito, quanto a pele na outra pele, tanto quanto escurecer acende os vagalumes.

sábado, dezembro 16, 2006

Não há nada mais melancólico do que a voz e a gaita de Bob Dylan.
Mora toda uma beleza na melancolia; nas almas que mergulham livres pelos abismos nossos de cada dia. Nas entranhas e estranhezas da casa, da cidade ruídos, desse mundo grande que a gente desconhece.
Encontros afora, voamos incertos rumo ao que nos parece mais certo. De escolhas e atalhos. De atarmo-nos e desentrelaçarmo-nos do que nos atrai e desconcerta.
A infância que nos abandona cedo: quando menos percebi já me escorria o sangue que escorrega agora veias e impulsos, saltos e buracos.
É que me dói um pouco essa coisa vida. Me foi dada assim, sem que eu pedisse a ninguém. Mas agora a imploro como quem reza. Procuro-a dentro e fora, e às vezes encontro migalhas tão preciosas que dá vontade de chorar.

And it´s all over now, Baby Blue.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

número dois

Correu. E correu tanto que se esqueceu da direção correta. Correu sem dó. Correu como quem se despede, se desmede, se desvencilha.

Atravessar cipós partindo-os ao meio ou carregando um pouquinho deles consigo tornou-se a atividade favorita. Assim como desenterrar minhocas ou encontrar ninhos com ovos dentro! Era gostoso, ela achava. Mesmo que fosse assim, sozinha e só, sem dó, sem lá, sem cá. Meio cá e lá, capengando ao pé de montanhas e capins. Os pés de cana tinha aos montes também (desses ela gostava menos, sabe-se lá porque). E cavou por cenouras e lavou-as da terra nos riachos.

Chega de ruralidade.

sábado, novembro 11, 2006

Fuga número um

Como se partisse para não voltar, olhou as horas no relógio pela última vez. E escovou os dentes com calma. Em cima embaixo atrás, fazendo movimentos arredondados do jeito que a dentista ensinou quando era criança. Tinha sido criança e poucas memórias deste tempo ainda lhe pertenciam. O resto tinha ficado dentro de cada casa que morou, de cada cidade, cada coleguinha de escola, cada boneca Barbie, cada primo, de cada doce de leite.
Agora a idéia era partir novamente. E se fosse preciso deixar as lembranças trancafiadas ali mesmo, o faria. Sairia apenas com a mala das roupas e alguns utensílios especiais (é engraçado como alguns objetos são fundamentais para seguirmos viagem). Até uma foto ou outra ela levaria consigo. "Se um dia as saudades apertarem doídas, é uma solução", pensou.
Olhou o quarto como quem se despede do que um dia foi, mas não houve apego: afeto um dia houve. Fechou a porta de casa e saiu deixando o cãozinho branco esperando por um breve tchau, pelo menos. Nem se virou.

A estrada era dessas que não se vê o fim. Mas em algum lugar ela tinha que dar, já que é esta a função das estradas afora (ligar uma ponta na outra ponta). E a menina caminhou paciente no início, depois faminta e mau humorada, então alegre e exausta, e pessimista do meio para o final. Depois deitou-se um pouco no meio daquela estrada (sem carros, sem vacas, sem bicicletas), e colocou os pés para cima. Fez movimentos de quem caminha pelo céu e cantarolou algumas canções que ocupavam-lhe a memória. Remoeu remorsos e roeu as unhas. Depois colocou-se firme sobre os pés pequenos e seguiu viagem.

Recolheu pedrinhas e lavou-as.
Encontrou um cavalo que batizou de Lulu, mas logo o deixou para trás, pastando calmo no seu ritmo-cavalo.
Pulou rios. "Os riozinhos parecem cortes em carne viva da terra roxa. No lugar do sangue, a água vivinha que lhes escorre pelas veias."- pensou. Ela mesma andava sangrando por aqueles dias, deixando rastros finos pela terra.
Alimentou macacos e passarinhos. Cuidou de pombas feridas por aqueles que as atiravam com suas espingardas de chumbo, por pura diversão.
"O homem é mais profundo que os animais", pensou.

Não viu homem naquela estrada que agora escurecia afoita. E cansada da própria voz, resolveu calar-se. Sentia falta de conversa de bar, de violão, de gente falando alto sem se escutar, das ruas intranquilas da cidade que um dia havia lhe abrigado. Agora a luz que tinha era a da lanterna pequena que carregava consigo. O resto era breu. Uma caverna infinita que se tornava o mundo naquelas noites sem lua.

Quando amanhecia ela já punha-se a caminhar novamente. E o fim, quanto mais perto mais longe se tornava.

( a continuar...)

quinta-feira, outubro 26, 2006

avesso

Quando entrei a casa estava revirada.
O estrago tinha sido grande e aparentemente irreparável. Irreversível.

Parei um instante.
Porta-retratos em cacos no chão. Paredes pichadas de tinta preta, escorrendo ainda; vasos jogados e terra esparramada; espelhos desfigurados e panelas sem tampa; cinzeiros esvoaçantes e bitucas por todo o carpete. Minhas fotos queimadas. Meus armários esvaziados.
Sentei-me, quieta, num pedaço de mesa que restara. Estava sã. E salva.

Por onde andei? Por quanto tempo estive fora?

Quis chorar mas não pude perder tempo com este tipo de auto-piedade.
Quis desistir.
Quis rir e dançar pelo carpete da casa detruída.
Quis gritar para os vizinhos. Quis ajuda.

Mas não movi um dedo, quase nem respirei. Fiquei encolhida sobre o teco de mesa pensando em como eu pude ter deixado as coisas chegarem a este ponto.
Rabisquei letras num papel e recitei palavras para ninguém. Passei a rabiscar a parede, molhando o dedo na tinta ainda fresca e esparramando para os pedaços que haviam ficado em branco. Desenhei ilhas, florestas, sóis.

Remei pela sala e fui me reencontrando em cada canto. Lembrei da posição usual dos móveis. Ri da posição usual dos móveis. Ri da minha antiga posição dentro daquela casa, dentro da disposiçao dos móveis, dos cômodos, dos cantos. Naquela época eu andava desviando. Eu gostava de fumar perto das janelas e agora eu acendia o cigarro no meio daquilo que um dia foi sala.
E agora era o que bastava.

domingo, outubro 15, 2006

- E sabe do que mais?!! - sussurrou soltando a fumaça entre os dentes. Falava entre dentes. Rangia-os, quase.
- Hum? - perguntou-lhe, displicente.
- Eu cansei. Cansei de alimentar os pássaros todos os dias. De regar as plantas que você comprou e nunca, nunca, nem sequer olhou para ver se permaneciam vivas. Se hoje estão verdes e radiantes é porque eu as criei. E você jamais me agradeceu por regar as suas plantas idiotas. Eu nem gosto de plantas.
- Nem eu, tampouco. Só comprei aqueles vasos para ver se trazia alguma alegria para essa casa, que já andava quase mórbida...
- Boa essa palavra. Mórbida. É como tenho me sentido vivendo com você. - apagou o baseado, sem passá-lo para Martim.
- Você sempre teve esse humor um tanto peculiar, Ana. Não venha me culpar pelas suas melancolias que já estavam aí bem antes de eu aportar nessas terras áridas.
- "Terras áridas"?! É você quem assassina as plantas e eu é que sou árida?
- Não, não. Se você continuar falando nesse tom que eu não suporto, eu vou dormir, agora mesmo.
- Não na minha cama.
- A cama é minha, Ana.
- Nunca!
- Sempre foi... - disse Martim, tentando acender a ponta que havia restado no cinzeiro.

Ana desistiu do embate por um instante. Olhou ao redor, a sala mobiliada por uma junção desorganizada e sem muito estilo dos móveis dele com os dela. A mesa que herdara de sua avó contrastava comicamente com as cadeiras modernas que Martim havia achado num brechó, baratíssimas. O sofá velho, dele. A luminária que pagou com esforço, dela. A vitrola dele. E os discos, a maioria, dela. Ao perceber-se pensando espontaneamente na divisão dos bens e assobiando "A Rita levou meu sorriso..." , arrepiaram-lhe os pelos da nuca e lhe subiu uma aflição pela espinha.
Chegara a hora fatídica?

- No que você está pensando? - perguntou Martim, que desde que se conheceram, tinha a mania de lhe fazer essa pergunta desagradável nos piores momentos possíveis.
- Estou com medo. - respondeu fechando os olhos para que ele não percebesse o seu choro contido.
- Já? - perguntou, tentando uma aproximação desajeitada e não muito carinhosa.
- Ainda...
E virou-se de costas, e fez um esforço grande para não chorar até que não pôde mais, e libertou todas as lágrimas que havia contido para parecer forte ao lado daquele homem forte com quem vivera por quase quatro anos.

- Isso. Chorar é bom, Ana. - e cantarolou inoportunamente "Chora, disfarça e chora. Todo o pranto tem hora...", tentando consolá-la.

- Cartola agora não, Martim. É muita maldade. Chega de crueldade comigo. Eu queria ter sido feliz com você. Não queria ter que chorar nunca. Muito menos na sua frente. - soluçou.

Martim não soube reagir. Afastou-se de Ana, foi até a janela e enfiou a cabeça para fora, como quando criança, passeando de carro com o pai.
- Pode chorar agora. Eu não olho. Prometo.

Ana fumou. E soluçou e fumou e soluçou e levantou e tremeu e bateu o pé forte no chão e rodopiou sem sair do lugar e se contorceu e levou as mãos à barriga e apertou as próprias coxas. Pausa.


Olhos abertos com dificuldade de tanto choro que tinha escapado, Ana começava a andar na direção de Martim, que de fato não se virara nem um instantinho para ver o espetáculo de sua dor (a dor é quase grotesca, animalesca). Ele lhe tinha sido fiel. Ele sempre lhe fora fiel. Mas nunca regou os vasos, nem alimentou os pássaros e nem cuidou daquele amor tão fértil que ela sentia por ele. Amor de mulher entregue, devota quase. Olhou-o no fundo dos olhos e da alma como que agradecendo por todo o tempo que haviam vivido juntos, naquela casa de móveis e plantas e dores-amores reprimidos. Agora era ele quem sentia medo, percebeu.

Ana foi embora.

E levou, no sorriso dela, meu assunto. Levou junto com ela o que me é de direito, arrancou-me do peito e tem mais...

domingo, outubro 01, 2006

Proparoxítona

Vida
me espera áspera
que venho sórdida
e escrevo póstuma


ou semi-lúcida

Espere-me no vão do momento-vôo

Que eu vou

Vida

me esqueça trágica
ou me beije ácida
que lhe sonho fétida

andando-te estúpida mente

...

Me escorra líquida
quando não mais puder máquina
Para, quem sabe?, lástima
No instante ínfimo


fino fino

Crepuscúlo

sábado, setembro 23, 2006

Im publicável

Fumar café e tomar cigarros. Nostalgi cafeí cotinas.

Cafetina e libidinosa: ando estranhamente virginiana- ascendente-touro.
De desamarrar dos cadarços, desamorosamente dolorida.

Noite chuva à beça nas cabeças harmônicamente doentes. Musical.

Deixando a vida andar com as próprias pernas, crescidinha que está, agora na segunda década nascimento.

Quantas bandas? Quantos vasos vazios, frases sem cor? Anominal.

Anônima.

Animal.

quinta-feira, setembro 21, 2006

O Elevador

com a colaboração imprescindível de Cristiano Gouveia

Afrouxou o nó da gravata que já o sufocava havia um bom tempo:

dezessete anos, mais ou menos.

Elevador. Térreo.

Encostou a testa no espelho do elevador como quem se abandona e o corpo pendeu vencido pela gravidade dos dias de vento seco e ar abafado que acompanhvam aquela semana.

Terceiro andar.

Triste e seca semana de agosto.

De fato, o mês do cachorro louco nunca havia lhe trazido benefícios, não que fosse supersticioso, o sujeito.

Dependurado pela testa colada no espelho, o elevador levava-o rumo ao apartamento que dividia com um papagaio e um peixe solitário, ambos instalados na lavanderia - assim faziam-se companhia, mutuamente (embora não se possa imaginar que tipo de relação pode estabelecer-se entre espécies tão distantes na escala evolutiva).

Nesta hora do dia, tudo o que se permitia a fazer era deixar-se encostar num dos cantos do elevador após ter libertado o pescoço do nó da gravata, fechar os olhos e não pensar em nada. Absolutamente. Décimo quarto andar era o tempo exato que tinha para se recompor de todo um dia de neurônios, discussões, mediocridades. E como eram bons aqueles vinte segundos! Deliciosa a sensação de deixar-se pender, a cabeça pesar, os olhos irem se acomodando e os pensamentos subindo lá para o teto. Ficava o ruído das engrenagens, estalos no elevador que precisava ser consertado diariamente.

Sexto andar.

A porta abre antes do tempo.

Uma mulher que é só perfume desfila elevador adentro, sobre os saltos-agulhas espremendo-lhe os pés. O cheiro entra de maneira avassaladora e o homem sente-se como se de repente tivesse cheirado um litro de lança-perfume fora de época; salta os olhos tentando entender. Desbaratinado, olhos abertos com dificuldade, custa a tomar consciência de que não estava mais solitário no seu trajeto térreo-apartamento - havia agora uma mulher plantada ao seu lado, de cara para o espelho examinando cuidadosamente as novas rugas que lhe vinham despontando na testa, embaixo dos olhos, ao redor da boca. "Ah, mais essa agora!", era o que ele pensava que ela poderia estar pensando naquele instante. Também o mês de agosto para ela nunca tinha sido muito fortuito, adivinhou.
- Ah, tá subindo?! - perguntou a mulher, com ar entediado.
- Sim. Décimo quarto.
- Hum. - bufou. Perfume doce, um casaco preto que lhe caía estranhamente bem e os olhos contornados por um lápis forte. A sensação peculiar de que era a primeira e última vez que a veria por ali. Não devia ser moradora. Seria a amante de algum velho babão? Uma prostituta de luxo? Ou até mesmo a amiga de uma moradora que também sempre havia chamado a sua atenção dentro do elevador.

Nono andar.

Engraçada era a relação que ele estabelecia com os moradores daquele prédio. Com timidíssimos "ois" e "tchaus", de atravessar a portaria e não ver nunca mais. Parecia que as pessoas simplesmente se dissolviam, se desintegravam cidade afora, e só voltavam a ter consistência ali, naquele espaço gélido, íntimo, que é o elevador. De luz fria e espelho escancarando os defeitos.

Envolvente aquela mulher que atravessava sua vida de dias sequencialmente iguais, numa noite que deveria ser como as outras todas.

Mas ali ele permaneceu, imóvel, olhos fechados, cabeça encontro de espelho. Pra deixar crescer outros sentidos, ver passear o cheiro, o quase-tato da pele da mulher sem nome, estrangeira, sombra, nenhuma mulher, ouvir sons, as batidas cardíacas aceleradas do coração daquela, misturadas com o seu, descompassado.

Décimo primeiro andar.

Quase pode sentir sua mão entre dedos. Quase um convite para o 14º andar, para o apartamento, para o sofá, depois a cama, depois cozinha, mesa, banheiro, loucos, encorpados um no outro. Pra ficar ali, na história, pra se contar ao papagaio sua aventura, beber todas e contar ao peixe certas borbulhas de certo amor.

Décimo segundo andar.

Já podia sentir o gosto do pós sexo, de olhos fechados dentro de certo elevador, dentro de certa mulher, nenhuma mulher, estrangeira. E pensamentos rarefeitos no teto, cheirando pele, suor, fim de um dia imperfeito de gravata apertada quase, quase transformado em noite delírio.

Décimo quarto.

Abre os olhos, quase em agradecimento ao que aquela mulher, estrangeira, proporcionou. Que não estava. Não era. Nenhuma mulher. Sonhos só. Só o “pim!” do elevador gritando aos ouvidos o momento de descer Vagar corredor chave porta trinco abrir e fechar descalçar calçado roupa toalha chuveiro aspirina cama.

Cama para novo encontro com nenhuma mulher.Tratar de assuntos de elevador...

“Sonhos sonhos são.”

domingo, setembro 10, 2006

Até o Fim

Boemia que me suga, leva-me a alma e transporta-a ao paraíso dos que pretendem fugir de si mesmos. Pulmão doído. Tempos nebulosos, esses.
Acordo com sol e durmo nesta embriaguez faminta, insaciável, impaciente que ando. De pulos, aos trancos, sem paciência para o farol vermelho, nem pudor para cantar desafinado no meio da rua. Apegada a novas pessoas e a tristes velhos hábitos. De encher e esvaziar, de não se sustentar, de correr e perder o fôlego rapidinho.
Boemia que me suga, leve-me para passear nos teus braços peçonhentos, sob o céu da chuva ácida, sobre o arco-íris da felicidade clandestina dos outdoors. Me leve para correr nas calçadas vazias e remotas, na selva fria da cidade mórbida, moribunda. Tire-me, morta-viva que tenho estado, deste limbo agridoce enjoativo. Vomite-me para que me renasça limpa, sem angústia que reste para contar a história. A minha história começa quando eu me desamarrei sem querer ser desatada. Quando fui descartada sem mais. E é difícil ir fundo nas coisas porque é difícil relacionar-se com tudo isso que nos cerca. Porque é difícil se doar, deixar doer, roer o osso, triturá-lo em pedacinhos de liquidificador. É difícil deixar-se reduzir, quase impossível.

terça-feira, setembro 05, 2006

Manifesto-desabafo-maniqueísta (eu sei)-a-favor-da-arte

O problema é que eles estavam despreocupados demais, e numa sociedade como aquela, era preciso manter-se produtivo a todo o instante. Lá o ócio não era muito bem visto, muito menos este tal ócio criativo de que falam. O importante era estar servindo ao sistema vigente, não deixando nunca que a grande máquina parasse de girar. Era preciso alimentá-la incessantemente, do próprio suor, das próprias noites mal dormidas e dos próprios filhos mal alimentados. Era importante inscrever-se no Exército ao completar os belos e fortes 18 anos e jurar pela própria bandeira defender aquela pátria que tão bem os acolhia. Lá, quando não se vinha de berço bom e farto, era tudo muito mais difícil, e então as horas dormidas eram menores ainda, e os filhos mais e mais mal alimentados. Também ficava difícil de morar em lugar agradável. O mais aconselhável, em casos de baixa renda, era construir a sua própria casa própria na força do muque e, se muito, com alguns companheiros e tijolos. Senão era papelão mesmo. Ou então podia ser até banco de praça para dormir, amamentar os filhos, fazer as necessidades. Comer, lá, era luxo. Coisa para poucos mesmo. Estudar então, nem se fale.Aos que não se enquadravam muito bem no tal regime, dava-se automaticamente alguns nomes facilmente identificáveis, como louco, marginal, trombadinha, drogado, hippie. Assim ficava mais fácil de controlar. É que lá, quando se dava nome às coisas, era possível exercer uma coisa chamada poder sobre elas. É. Tinha essa coisa chamada poder, lá. Era uma coisa que corrompia os que a possuíam, e ela sempre acabava por estar na mão de poucos. Por coincidência ou não, era sempre na mão daqueles que tinham, em maior quantidade uma coisa chamada dinheiro, que calhava de estar esse tal poder. Não era uma regra absoluta, mas naquele lugar, dinheiro e poder eram quase sinônimos. E o mais engraçado é que essa coisa de poder, dinheiro e tudo o mais, calhava de estar na mão de uma tal minoria privilegiada da sociedade. É. Engraçado isso.Enfim.Eles - aqueles aos quais me referia no início do texto- haviam nascido sob este sistema, e por sorte ou não, inseriam-se nesta tal minoria privilegiada. Portanto tinham frequentado escolas em que se pagava para obter educação (sim, pagavam como se paga um produto qualquer). Foram bem alimentados quando crianças, dormiram em camas quentinhas, fizeram aulas de natação, balé clássico, inglês, futebol, violão. Ganharam carros aos 18 anos e escaparam do exército. Cursaram faculdade pública. Viajaram. Fumaram maconha e tomaram vinhos bons nas belas festas de família. Enfim. Eles. Era uma menina e um menino. Irmãos. Criados juntos, mesma mãe, mesmo pai, mesmo leite, mesmo esperma, mesma cor dos olhos. Apesar de tudo eram bem diferentes.Ele desde cedo integrou grupos de discussão marxista, socialista, leninista. Pensou em pegar em armas e fazer a tal máquina parar de girar à força, embora essa coisa de armas fosse parte fundamental da engrenhagem, e ela rapidamente as absorveria. Sem contar que as armas da máquina eram maiores e mais fumegantes que a dos riquinhos revolucionários. Pois é. Ele passava o dia a falar de socialismo e, ao chegar em casa, a empregada havia sempre preparado para ele um prato diferente.Ela descobriu o teatro muito cedo, não se sabe bem como, mas o que ocorreu foi uma súbita identificação. Súbita e profunda. Quando percebeu que fazia parte daqueles que haviam sido excluídos do grande sistema vigente, era tarde demais. Mas junto com esta descoberta, veio também a de que este tal teatro, e esta coisa chamada arte que havia naquele lugar, eram coisas muito poderosas, prontas para voltarem-se contra a máquina a qualquer instante, se não fossem tão sufocadas pela falta de dinheiro. Era muito perigoso dar dinheiro a este tipo de trabalho. Sim, porque a própria essência da arte possuía seus valores fixados em elementos bem divergentes daqueles predominantes. E mesmo porque, era fácil convencer o resto da população de que a arte estava em segundo plano, e afinal de contas fazia sentido, já que a maior parte da população estava antes preocupada em conseguir sobreviver. Muito mais tranquilo era deixar essas pessoas preocupadas e ocupadas o bastante na tentativa de sobreviver num sistema que dependia delas mas as oprimia- simultaneamente, do que deixar espaço para que se preenchessem de teatro, música, literatura. E aí está mais uma coisa que mantinha-se na mão de uma tal minoria privilegiada, e que portanto, estava fadada a correr atrás do próprio rabo, ad infinitum. Mas esta era uma outra tática daquela engrenhagem poderosíssima. Esgotar a arte nela mesma, sufocá-la, "proteger" dela a população domesticada. Para estes eles haviam reservado um brinde especial chamado cultura de massa, para não quebrar com a velha e funcional regra do panis et circences. Amansar a massa para domesticá-la cada dia mais.De qualquer maneira havia uma coisa até meio de outro plano chamada fé a qual ela se apegava. Uma fé quase que imprescindível para se viver em tempos tão fúnebres, cheios de más intenções. Uma fé ardida de que o novo deveria vir pela arte e em especial pelo teatro, de que era lá que a população-massa-de-manobra talvez encontrasse e resgatasse um sentido maior do que era o estar vivo, fazer parte deste mundo, conviver com outras pessoas, conhecer-se a si mesmo, desalienar-se, motivar-se, alimentar-se de algo que vai além da vida e da morte do dia-a-dia. Numa situação em que estar vivo era morrer um pouco todos os dias. E ir murchando. Secando. Até ficar como asfalto, como tijolo, como banco da praça.Contra o acinzentamento contínuo e crescente, estava a arte. E era com ela que todos deveriam confrontar-se, pelo menos uma vez, durante a dura caminhada nesta estrada escura.

quinta-feira, agosto 31, 2006

orgia

Os corpos nus e jogados, manchados de vinho tinto, preenchiam bem o curto espaço da quitenete. Se chegasse alguém de fora naquele momento pensaria ter ocorrido uma chacina, das bem sanguinárias, ali dentro. Na verdade, era bonito de ver aquela cena. Uma composição quase perfeita de corpo largado, bituca e taça de vinho manchada.
Mais nenhum cigarro aceso e todos acometidos por um cansaço insuportável, os corpos não mais dançavam nem se tocavam, agora era só sono que preenchia
o espaço. A luz entrava forte pela janela grande da quitenete sem cortinas e um dos corpinhos começou a querer despertar. Foi vestindo calcinha, calça, sapato, enquanto o frio lhe maltratava os ossos. Tropeçou numa garrafa que fez com que os outros levantassem, rápidos. Entre eles, um silêncio quase absoluto, não fosse a vida real acontecendo lá fora à todo vapor. Mas nos ouvidos ainda ecoavam risadas, música, tosses e gemidos da noitada e tanto. Alguma risadinha sonolenta ainda se mostrou, mas as palavras não se faziam necessárias naquele momento de procurar a meia, vestir a blusa cheirando a cigarro e maconha, tropeçar no cinzeiro, sentindo o gosto desagradável e inevitável da ressaca. O fato é que amanhecia, e toda aquela luz, junto com o sono mal dormido, pareciam varrer dali qualquer dose de romantismo e embriaguez que ainda pudesse ter restado. Havia até um certo incômodo em olhar para os outros.
Os corpos agora vestidos e amassados se dirigiam para a porta, e da porta para o elevador, e do elevador para a rua. Rua.
Vida voltando ao normal , de uma só vez, sem dó.
Há cinco minutos eles eram corpos nus, amontoados e embebidos de vinho.
Agora ele era publicitário, ela atendente de telemarketing, a outra garçonete e o outro escritor. Alguns tchaus e beijinhos comportados.
Os caminhos rapidamente se dividiram, cada um indo cumprir o papel que lhe cabia na sociedade.
Frio doído de amanhecer, rua cheia, e ela seguiu desviando, a pé, até a sua casa, com a frase dita na noite anterior ecoando nos seus pensamentos: "Você me é perigosamente familiar."

quarta-feira, agosto 23, 2006

Por mais que doa, que seja, que fuja.

Ainda que restem um, dois, três caroçinhos de ingenuidade.
E mesmo que anoiteça cedo quando se quer que o dia não acabe nunca.
E que a vida toda ande com as próprias pernas, sem nos causar tanta inquietação.
Por mais que a civilização gere um terrível e eterno mau-e-bem-estar.

Qando não tiver mais soluço para soluçar, e pestana para lapidar.
Como se fôssemos todos patinhos que seguem rumo ao sul, ou gaivotas que vão à pesca, ou ainda, sapos que são engolidos por cobras inofensivas.

Ainda assim. Vale.

Mesmo em pleno inferno astral, ou numa viagem de carro quando o lá não chega nunca. Mesmo que a estante de livros desabe livrando-os todos da ordem decrescente; mesmo sabendo que quem eu quero não me quer e ponto.

Ainda que seja tudo mentira. Ou até mesmo verdade jogada na cara com a intensidade de um soco no estômago.

Mesmo assim. Vale.

Ou quando a lua sorrir mais forte, expulsando do céu qualquer rastro de estrela, tentando por assim dizer, eliminar a concorrência. Ainda que, de cócoras, as coisas não se facilitem muito.

E ainda que a cabeça doa doa doa, ecoa no ouvido um zumbidinho meio mórbido, meio cômico, me dizendo de maneira quase sincera, que as coisas valem ser vividas.


quinta-feira, agosto 17, 2006

Querido Tom

O silêncio gritou nos seus ouvidos e, ao tentar esbofeteá-lo, acabou por acertar a própria orelha e despencou no chão. Salvaram-lhe as mãos, ágeis, amortecendo a queda dura. Despontou um choro baixinho quase mudo, que lhe lembrou de quando era criança e chorava debaixo do cobertor engolindo os soluços, para que ninguém soubesse que estava chorando. O pior é que ele dividia o quarto com o irmão mais velho, e uma vez o Tom até que percebeu tudo e ele ficou com vergonha. O Tom acendeu a luz no meio da noite e as retinas me doeram, enfiei cabeça e tudo embaixo do travesseiro para que ele não visse o meu rosto molhado de lágrima. Mandei ele apagar a luz e me deixar em paz. Ele falou que chorar era coisa de viado, e que esperava que não fosse isso que eu estivesse fazendo. Eu falei "Eu nunca choro". E no final da frase o choro me doía na garganta, estrangulado, preso, quietinho que tinha de ser.
E agora ele estava ali, chorando quieto e sozinho, no meio da calçada, para todo o mundo ver. Os pedestres sérios até que viam, mas não diziam nada, nem uma palavra de conforto para tentar ajudá-lo. De qualquer maneira, não era ajuda de pedestre que ele queria no momento.
Só ela é que poderia salvá-lo. A menina dos olhos-amêndoa que uma vez olhou-o bem no fundo da alma e sorriu, como se lhe descobrisse os segredos e os perdoasse, todos. Ela dizia que não precisava tanto sofrimento, e que mesmo sem amá-lo naquele momento, aprenderia a amá-lo um dia. Há tempos a menina estava querendo se apaixonar, mas infelizmente não era muito ela que conseguia decidir essas coisas.
Ele jogado na calçada e os pedestres o pulavam como se fosse cocô de cachorro. Ele queria tê-la feito se apaixonar, mas infelizmente não era muito ele que decidia essas coisas. E agora não suportava aquele silêncio em plena Avenida da Consolação. Queria ruídos e ônibus e buzinas e motocicletas que lhe ajudassem a distrair o pensamento, mas era só silêncio que pairava, que doía, que atormentava.

É, Tom. Hoje eu tive que chorar. Porque foi insustentável.

terça-feira, agosto 15, 2006

Queria desaparecer por instantes e voltar recém-nascida, maleável, opiniões em aberto, ingenuidade latente. Aí eu iria fazer tudo de novo. E tudo igual. Até chegar a este ponto-encruzilhada-precipício-propício e pensar: queria desaparecer por instantes.

Estive ausentemente doente. Ou seria doentemente ausente? O fato é que estive com a garganta em brasa e uma febre suada. Ficar doente só serve para agravar a melancolia e a solidão de se estar doente. Detesto. Engolindo mel atrás de mel, suco de laranja após suco de laranja, própolis, limão e dá-lhe homeopatia. E após uma boa dose de cama, depressão, dor nos ossos e suor, ufa, melhora-se, um pouco.

"É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte."

domingo, agosto 06, 2006

Destroços

...

estremeci ao arranhar as unhas vermelhas no espelho enevoado pelo vapor de um banho quente. Quando apalpei o pescoço úmido foi difícil encontrar os batimentos cardíacos. Tum... tum-tum...tum... Pulso lento e punhos dispersos sacudiam no ar, como se dançassem em desenho improvável. Como se pela primeira vez eu mal percebesse meus traços num espelho embaçado, comecei lentamente a traçar rabiscos fazendo com que, aos poucos, o corpo fosse se mostrando ali naquele reflexo. Um pouco de queixo. Um canto de sobrancelha. Um mamilo. Um corpo fragmentado e estranho foi aparecendo e se construindo, qual Frankstein de mim mesma. Como se me moldasse num espelho cubista e o corpo não fosse nem mais meu, muito pouco meu, meio caco de telha - caco de vidro.
Pela fresta da porta entreaberta, as gotículas do vapor começavam a se dispersar, e a minha imagem foi se fazendo mais e cada vez mais nítida, até chegar à nitidez tão perfeita quanto um espelho pode oferecer, à imagem e semelhança de nós mesmos. Foi quando apareci inteira só para mim, e incomodei-me estranhamente diante de liberdade tamanha.
Recuei e flagrei o meu cãozinho branco e pequeno e coitadinho: estarrecido. Espionava o meu corpo úmido em cacos, em telhas, em vidros de espelho esparramados pelo chão; pousou as patinhas suaves num estilhaço e deixou rastro de sangue comprido, até a sala. Sangue de cãozinho que nada tinha que ver com meus despedaços: ele não tem culpa de nada.

sexta-feira, agosto 04, 2006

Em caso de incêndios

Constante disritmia entre as batidas do coração e o sangue que circula pelo corpo. Em outras palavras: rebuliço. Ou ebulição – embora já tenha passado da idade.
Apelo para palavras que, mesmo sem combinar muito bem - tortas que saem, torta que ando – aliviam o descompasso eterno entre pensamentos, estômago e mãos. Preciso vomitar palavras numa folha em branco, preenchendo-a de nada e tudo, de ânimo e de pântano.
O que fazer em casos de incêndio interno?
Dêem-me extintores de âmago!


“Me deixe hipnotizado pra acabar de vez com essa disritmia
Vem logo, vem curar teu nego que chegou de porre lá da boemia.”
Martinho da Vila

domingo, julho 30, 2006

Sangue-suga

Tranço pernas e meios-fios na madrugada eterna de não clarear dia e nuvem.

Meia fina, seios firmes, boca rasgada. A fumaça lhe escorrendo pelos dedos; sangra. Lisos pêlos de tigresa e língua áspera, madura.

Traço linhas tênues joelhos afora e risos de boca entreaberta (entre a dor e a delícia) me censuram, sem mais.

Nunca quis tanto as suas mãos tateando o intangível, o incansável.
Queria aprender a amar apenas com os olhos.

Passa um homem alto alto (desses que não choram) pedalando as solas no asfalto duro de roer; cumprimenta o gari entretido, que sem notá-lo avança no seu serviço enroscado.

Olha a voz que me resta.

Desfecho-me.

sábado, julho 29, 2006

Estou
Sem
Estado

De quatro

De

L
A
D
O

De lado de lá

De pedras e caminhos de folhas
Temperadas
Tropicais

Lugar-comum, qualquer-lugar
Bem-te-vi que bem-me-quer
Ossos do ofício casto
Rastro de inocentes pardais
De pegadas que apagam-se
Esparsas
Ofício duro de cantar e roer e cantar
Trocar singelos pius e arrepiar-se ao sabor do vento do outono que avança e liberta as folhas-mortas.
São leves, essas.
Leves, pousam.
Pousam e piam e cantam e compactuam com o solo fresco que as recebe e se deixa envolver.
É bonita a dança entre a folha, o solo e o vento.
Me envolvo e me deixo arrastar quando acorda o verão.

domingo, julho 16, 2006

"...o amor é trilha de lençóis e culpa, medo e maravilha..."


Tom Zé - o único sobrevivente!

quinta-feira, julho 13, 2006

Retalhos II

Passear com o cachorro que não sabe de nada, ou sabe muito mais do que eu, uma reles sapiens sapiens. Andar em círculos pelas calçadas estreitas e cheias de gente indo e vindo, indo e vindo... E bicicletas me atropelam e macacos me mordem. A chuva cai mais fria do que nunca na minha nuca espremida entre a cabeça e o tronco, me contorço de frio e de alegria, de frio e de medo de vida que me toma sem mais nem menos. A vida acontece mesmo quando não quero. Escalo edifícios e a vida me cai em forma de vaso de flores coloridas (gosto das orquídeas e dos girassóis). A selva-centro-da-cidade esperneia por atenção enquanto viro reviro na cama implorando por um minuto de silêncio, só um instante, só queria um pouco de silêncio. Seria pedir demais?

Fecho os olhos, aperto-os com as mãos enquanto vou entrando debaixo do travesseiro, entrelaçando as pernas no lençol florido até formar um nó de pele e pano e pé e perna e lençol.Resta-me o ar mal respirado debaixo do travesseiro que disfarça muito pouco o ruído da cidade do lado de fora da janela.

Campainha.
“Quem é?!”. A voz surda saindo dos lençóis não chega ao outro lado da porta, e o visitante insiste na campainha. “Espera!”.
Desato-me. Corro (ai!) tropeçando nos móveis da casa (ai!) que ainda não se habituou com a minha presença, até chegar (ai!) na porta. Olho pelo olho mágico (as paredes têm ouvidos, e as portas, olhos): uma senhora e seu gato esverdeado a tira-colo. Tossem, ambos.

Semi-nua, abro a porta sem pudor. A tosse cessa. O gato pula do colo da dona e me olha com receio – prefere ir roçar nas paredes. A senhora pede cigarro com sua voz engasgada. “Vou buscar, espere”. Longa pausa. “Toma”. Ela imóvel. “Quer entrar?”. Sequer hesita e entra estendendo-me um isqueiro que parece mais antigo do que ela. Pausa curta.“Legal esse! Nunca vi igual”, puxo o assunto. Tosses.
Fumamos longa e silenciosamente, lado a lado, enquanto o gato minúsculo arranha as unhas no meu sofá já calejado.
“Música?”, arrisco. Ela vira-se para mim, dá uma boa olhada nos meus peitos nus, ruboriza-se e disfarça em seguida olhando para o quadro esquisito diante do sofá. Tragada grossa seguida de tosse. Tusso. “Olha. Tem música clássica, se a senhora gostar. Mas eu prefiro mesmo é um bom ‘Vinícius e Toquinho’. Pode ser?!”.

Não sei bem como aconteceu, mas quando percebi já estávamos os três (eu, a velha e o gato verde musgo) pulando pela sala e sobre os sofás ao som elétrico dos Rolling Stones. O cabelo de laquê da senhora asmática já estava todo despenteado, e de tempos em tempos ela gostava de ir até a janela e soltar gritinhos, certa de que toda a cidade a escutava.

Foi uma noite e tanto.

sábado, julho 08, 2006

a b i s m o

Não fui amada o suficiente antes de nascer, mas cuidada em excesso depois de crescida.
Não sou genial. Possuo tendências melancólicas, solidões, memórias.
Fumo um cigarro inteiro no curto trajeto do ponto de ônibus até a minha casa.

Acredito que todos somos um pouco prostitutos: vendendo-nos através de imagens, estéticas inventadas, estilos absurdos. Fumo cigarros prostituindo-me. Visto meias calças coloridas e cachecóis, prostituindo-me. Pinto os olhos. Danço. Dou risadas gostosas.
Prostituindo. Me.

Sou uma exibicionista. Não poderia ser atriz.
Gosto de escrever: é mais um jeito de fingir.
Buracos negros me corroem. Cerveja sossega. Os homens me querem, não o suficiente.
Invento-me.
Quantos mil-disfarces será que me cabem? Desfaço-me. Um homem é um homem. Despedaços.
Tem dias em que tudo dói. E caio... lento...

No silêncio inexistente da cidade-precipício, abro os braços como paraquedas: o vento que bate na cara tem gosto de poluição. O olho lacrimeja. O cabelo voa. Mas a rede – formada pelos invisíveis fios de fumaça, luzes, palavras, antenas parabólicas e meios-fios – amortece a queda. Saio ilesa, como um trapezista.

Acordo dando coices no ar, mas o alívio de estar viva não é o bastante.
Continuo caindo.

sábado, julho 01, 2006

Não vou-me embora pra Pasárgada

Traumas e tabus impiedosos escorrem entre os homens nas avenidas e calçadas. Homens que vão do nada para o lugar nenhum, algum silêncio procuram procuram sem cessar. Meninas-mulheres que nem peitos têm, já abrem as pernas para o desconhecido de pentelhos grisalhos e não gozam. Quase não gritam. Ouvi dizer que choram engolindo o choro quando deparam-se, sozinhas, consigo mesmas. E quando, raramente, apaixonam-se. Crianças que já nascem cansadas da vida que lhes foi reservada (você já viu criança cansada?). Sem nome e sem cara de criança: aborto. Fome que dói no peito, que rói a cabeça, cria carcaça. Meninos que vão à caça de revólver na calça e droga no bolso não são absolvidos. Mas absorvidos pela terra de que quem pode, pode. Não sei se há Pasárgada, mas se houver, acho que hoje em dia as coisas lá, estão muito parecidas com as de cá.

Sem Título

Pararatimbum.
Eu vou de vento em popa, louca louca.
De cara leve, cocacola.
No lilás do dia quase noite, esquento e imploro. Oca.
Loba que sou, vicio. E choro.
Choro de chover-me toda. E topo.
De sair daqui, ir ali, já volto, sei lá.
Lá. Depois da neblina que nos envolve:pó.
Toda errada e certa, etcetera etcetera.
Encontrar-me inteira e fumar cigarro. Ubacobaco. Canções e tabaco caro de doer os olhos e fumar a boca. De sugar a boca e lhe lamber os olhos. Trocar alhos e bugalhos. Fumar-te inteiro e sair correndo cantando sambando.
Rio de janeiro.

terça-feira, junho 27, 2006

Retalhos

Não queria soneto, nem banda, nem cupido. Queria percorrer ruazinhas de paralelepípedo rodeadas por casas de tijolos ruivos, com trepadeiras nas grades e gatos siameses sob os arbustos, à espreita. Quando me aproximo para alisar os pêlos frágeis, somem ágeis pelos telhados, feito poetas flutuantes. Paralisados, encaram-me lá de cima através dos olhinhos brilhantes.
Nunca fui o tipo que agrada aos animais.

Estrada afora, noite fria, álcool para circular o sangue. Corro deixando paralelepípedos, arbustos, grades, ruivos e gatos de olhos selvagens para trás.

Olhos embaçam lentamente como se fossem óculos e a noite se faz dia claro de céu e sol, mas o frio é mais ácido que nunca, de penetrar nos poros provocando pequenos e torturantes choques.

Cafés e cigarros empilham-se sobre a pia da louça de anteontem, dando um ar desleixado à casa. Ela samba na sala atiçando os vizinhos, ele se fecha no banheiro para chamar a atenção. "Dei um aperto de saudades no meu tamborim. Molhei o pano da cuíca com as minhas lágrimas..." gritava Clara Nunes do lado de fora da porta.
(to be continued...)

domingo, junho 25, 2006

Insones

Despertar nos momentos insones e ir à janela para observar o movimento improvável da Avenida São Luís, segunda-feira, 2 e meia da mañana. Nas insones horas centrais, o movimento incompreensível da avenida de luz amarelada me atrai e eu busco um binóculo. Dois moleques sentados no meio-fio, em aparente silêncio, numa calma quase estranha para uma Duas-e-meia-da-manhã central, plena segunda-feira, carros esparsos e dispersos. A luz que ilumina os meninos, clareia também uma menininha que anda em círculos ao redor do poste do século XIX, e em seguida entra num fusca preto que parte. Imagino por um curto instante o possível destino do fusca e da criança estranhamente acordada na madrugada da cidade. Já foram. E os moleques amarelados do meio-fio, quietos, compactuam do silêncio deles, da avenida e de mais ninguém. Talvez um pouco meu também. Meu e da insônia que me traz para escrever. Mas entre o não-sono e a insônia, opto por escrever. A cidade e seus ruídos raros da madrugada me fazem companhia na jornada dos que não dormem quando deveriam. Zumbis e crianças no meio-fio, encontram-se, dispersam-se, ruídam-se e compactuam-se no silêncio da São Luís, do centro da cidade que aparentemente ronca.

sábado, junho 24, 2006

Romantismo

Se ainda tivesse coragem de entregar-se para o amor, o imenso pasto do desconhecido, do alheio, do outro que não ela, o faria sem piscar os olhos. E seria fácil. Maravilhoso no início, de doer a barriga, tomar vento na cara, ouvir música apaixonada, de brilhar os olhos. Mas depois... Aos poucos iria ralentando, ofuscando, murchando, até que se esvaisse por completo e virasse só uma cosquinha debaixo do braço. Ah! Então era para lá que ele ia (o amor)? Não queria a descoberta num momento como aquele. Como é que uma coisa tão grande e brilhante podia se reduzir e quase sumir depois de um tempo?
Descobriu também que o amor é como bexiga, que infla e murcha, e precisa de muito ar nos pulmões e sangue circulando nas veias para poder mantê-lo.
Mas como podia vir ele despontando com tanta facilidade por entre os cabelos e a nuca acariciada? Será que era o mesmo amor que nascia de novo, assim, quase sem querer? Sem pensar, sem saber? Então era só de sentir? Era só abrir um espacinho que ele já ia chegando assim?
Não se sabe ainda, desde o mais antigo dos apaixonados, dos tempos que não são nem imagináveis (como sabê-los?) até hoje, como funciona e a que veio esse tal amor. Ouve-se por aí que ele está em extinção. Mas será possível extinguir o amor? Desprover-nos de tal bênção, de tal fé, de tal coração batendo forte? Não será inevitável, o amor?
E eram tantas e todas as questões que ela teve de abandonar o píer onde havia se sentado para encontrar algumas estrelas entre planetas e satélites, para isolar-se num mundo de idéias formuladas, onde o amor fica de fora. E era justamente este que ela buscava em meio a tantos pensamentos que caíam tortos na mente. Acabou pegando no sono sobre o colchonete duro que escolhera para dormir. Os sonhos iam e viam, se faziam fortes num momento, de histórias elaboradas e enredos analisáveis, e noutro, apenas passavam sem deixar grandes marcas: “como o amor”, pensou dormindo.

quarta-feira, junho 21, 2006

Dedicatória

Para todos os meus vivos e mortos. À minha antiga e presente vontade de viver. Vontade de crescer. Àqueles que se fixaram, aos parasitas, aos nojos e tesões. À minha meninice, meu medo, meu veneno. Para os que se aproximam devagar, sorrateiros e me tomam, susto! À tudo o que espero, ao sucesso e ao fracasso. Para o que me dôo e dói, fraca. Para a minha futura força, às transformações maiores, aos diabos e aos heróis. Aos errantes ao acaso, aos que dormem ao léu, sob o véu da cidade suicídio. Aos mortos. Aos semi-deuses, à Zeus, aos Zés... Para aqueles que ficam, sempre eles. Para nós que dormimos e acordamos esperando o dia nascer feliz. Para todos.

vácuo

Tô precisando de ar. Aqui, no vácuo, é asfixiante. É difícil. Não dá para se mexer muito bem. Não dá para receber visitas. Não dá para enxergar o que o vizinho está fazendo. Não tem bicho de estimação. Nem música.
O vácuo não é quente nem frio. É surdo, mudo, escuro. Não é duro. Nem líquido.Não passa novela aqui no vácuo, não tem nem televisão.
É triste e silencioso.
Asfixiantemente solitário, o vácuo. Mistura de buraco negro com buraco de tatu. Sensação de pé enterrado na areia da praia.
Não há pás. Nem castelos. Muito menos pé.
O vácuo é mais ou menos parecido com o nada. Sabe o nada?

Introdução...

Este é para escrever o que não faz sentido, o que não tem a lógica (precisa), o que não sente saudades.
Este é o que aguenta, forte, lúcido: um brinde!
É o que eu não conheço, o que estranho, que em mim se faz ausente.
É o que faz falta por ser deliciosamente proíbido, pecado, o original.
É este que me segue quando não sei pra onde ir. O que me consegue quando sou difícil, se já sou ou já o fui, não sei.
É este o das idéias inacabadas, que não sentem vergonha. O que se expõe, sem medo das avenidas e das palavras que nunca combinam.
Este é o que não sou, onde não vou, onde não estou. É aquele ali, atravessando a rua com os pensamentos sussurrantes. É aquele que procuro quando atravesso a São Luiz, aos trancos e barrancos.
Relance.