quinta-feira, julho 13, 2006

Retalhos II

Passear com o cachorro que não sabe de nada, ou sabe muito mais do que eu, uma reles sapiens sapiens. Andar em círculos pelas calçadas estreitas e cheias de gente indo e vindo, indo e vindo... E bicicletas me atropelam e macacos me mordem. A chuva cai mais fria do que nunca na minha nuca espremida entre a cabeça e o tronco, me contorço de frio e de alegria, de frio e de medo de vida que me toma sem mais nem menos. A vida acontece mesmo quando não quero. Escalo edifícios e a vida me cai em forma de vaso de flores coloridas (gosto das orquídeas e dos girassóis). A selva-centro-da-cidade esperneia por atenção enquanto viro reviro na cama implorando por um minuto de silêncio, só um instante, só queria um pouco de silêncio. Seria pedir demais?

Fecho os olhos, aperto-os com as mãos enquanto vou entrando debaixo do travesseiro, entrelaçando as pernas no lençol florido até formar um nó de pele e pano e pé e perna e lençol.Resta-me o ar mal respirado debaixo do travesseiro que disfarça muito pouco o ruído da cidade do lado de fora da janela.

Campainha.
“Quem é?!”. A voz surda saindo dos lençóis não chega ao outro lado da porta, e o visitante insiste na campainha. “Espera!”.
Desato-me. Corro (ai!) tropeçando nos móveis da casa (ai!) que ainda não se habituou com a minha presença, até chegar (ai!) na porta. Olho pelo olho mágico (as paredes têm ouvidos, e as portas, olhos): uma senhora e seu gato esverdeado a tira-colo. Tossem, ambos.

Semi-nua, abro a porta sem pudor. A tosse cessa. O gato pula do colo da dona e me olha com receio – prefere ir roçar nas paredes. A senhora pede cigarro com sua voz engasgada. “Vou buscar, espere”. Longa pausa. “Toma”. Ela imóvel. “Quer entrar?”. Sequer hesita e entra estendendo-me um isqueiro que parece mais antigo do que ela. Pausa curta.“Legal esse! Nunca vi igual”, puxo o assunto. Tosses.
Fumamos longa e silenciosamente, lado a lado, enquanto o gato minúsculo arranha as unhas no meu sofá já calejado.
“Música?”, arrisco. Ela vira-se para mim, dá uma boa olhada nos meus peitos nus, ruboriza-se e disfarça em seguida olhando para o quadro esquisito diante do sofá. Tragada grossa seguida de tosse. Tusso. “Olha. Tem música clássica, se a senhora gostar. Mas eu prefiro mesmo é um bom ‘Vinícius e Toquinho’. Pode ser?!”.

Não sei bem como aconteceu, mas quando percebi já estávamos os três (eu, a velha e o gato verde musgo) pulando pela sala e sobre os sofás ao som elétrico dos Rolling Stones. O cabelo de laquê da senhora asmática já estava todo despenteado, e de tempos em tempos ela gostava de ir até a janela e soltar gritinhos, certa de que toda a cidade a escutava.

Foi uma noite e tanto.

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