segunda-feira, maio 12, 2008

Idade

Bate bate bate. Quem?
Ninguém.
Volta a bater. Alguém aí?

Aparentemente não. Encosto o ouvido na porta, quero ouvir, tentar reconhecer.
Ninguém.
Outra vez. Bate bate.

Corro. Seria aquele que me esqueceu aqui? Mas já faz tanto tempo. Dez, doze anos, vai saber. Nem a idade eu me lembro mais. Devia ter 20 ou 25 anos. E ele 30. Ou 17? Vai saber.
Ninguém.

Até que deu saudades agora. Podia ser ele, não podia? Que acordou no meio da noite e sabe-se lá porque sentiu a minha falta. Justo a minha, que mora aqui comigo há tantos séculos. A falta é minha, mas ele pode tê-la sentido, perfeitamente. Claro que pode.
Não pode?

Quem tá aí?

Ele se lembra de onde eu moro. Acho que ele também viveu aqui por um tempo. Não muito. Pouco tempo. Tempo suficiente pra que ele se lembrasse um dia. Um dia ele teria que contar para os filhos. Contar que um dia ele viveu aqui. Comigo.
Teria filhos?

Bate. Alguém?
Ninguém.

Seria um de seus filhos: O mais velho? Investigando a história de seu pai, que agora havia sido assassinado e tudo o que lhe restara era uma carta que dei ao seu pai quando fiz dezoito anos. Tinha essa mania engraçada. A aniversariante era eu e ainda assim eu escrevia cartas. Mas nunca ouvi que fosse proibido escrever cartas no dia do próprio aniversário. Engraçado é. Ou esquisito. Sei lá. O fato é que fiz dezoito anos. Ou dezenove? E escrevi uma carta só com as melhores palavras. Entreguei-lhe a carta junto com a minha alma. É. Bonita essa história.

É você? Veio buscar as suas coisas afinal?

Fiz questão de que ele esquecesse pertences para que um dia voltasse. Nem que fosse só pra buscar os CDs, livros, agasalhos. Eu o esperaria com o café. Ele reconheceria a casa, quem sabe me reconhecesse também. Eu lhe contaria histórias. Ele ia sorrir e fingir que se lembrava. Eu fingiria que não o amava mais.

Quantos anos?

Não me lembro, 20 ou 25, 17 ou 30, 18 ou 19. Não me lembro não me lembro não me lembro e não esqueço que no dia 27 de outubro de um ano qualquer ele partiu pra um dia entrar de novo pela porta, ouvir as minhas histórias fingidas, e eu fingir que vivi todo esse tempo, que vivi intensamente, vivi tudo, enquanto tudo o que vivi foi espera, longa e infindável espera. Mas fui fiel. Uma vez na vida fui fiel: na espera. Nas história que fingi esquecer, nas fotos que fingi rasgar, nas cartas que misturei com minha alma.

Abro a porta. Uma cesta cheia de migalhas do lado de fora. Me deixaram um presente.

Há 25 anos.

Ou seriam 20?

quinta-feira, maio 08, 2008

ME

Frio no dedo e no tendão do meu pé. Endurecida. Auto-censurável ao extremo. Sou a minha pior crítica. Eu poderia assumir a profissão: crítica de mim mesma. Será que existe algo mais chato? Não seria dar importância demais a mim? "Deixe-me ir, deixe-me ir", digo assim, para um eu que mora aqui. Me deixando em paz eu teria um pouco de horário livre para o lazer, as necessidades fisiológicas, os ócios nossos de cada dia. Falta-me libertar de uma impiedosa habitante de mim. Essa daí que vos fala. Que hora é uma, hora aoutra. Hora eu, noutra hora eu mesma, que me rôo inteira em palavras mal cuidadas. Agora quero que se dane esse cuidado tolo; aprisionada dentro de um ego gigante. E me exponho mesmo. Porque já não dói quase nada. Quando quase tudo ainda doía eu me espremia e saía um pouco de sangue lá do fundinho da alma, onde mora a dor e a delícia. O choro e o gozo e a súplica. Agora ando tendo ataques de riso um pouco incontroláveis e nunca foi tão bom habitar essa casinha, esse corpo cavalo que não é fraco não. Ando descobrindo-me dentro de mim ou dentro de algo que me encobria em mim. Que me escondia de mim. Agora tenho vontade de andar rebolando e chamar a atenção dos transeuntes atarefados. E canto alto mesmo "Tira as mãos de mim! E vê se a febre dele guardada em mim te contagia um pouco!". Contagiada de uma liberdade recente, queria que todos ouvissem, vessem, saíssem pra ver a banda passar cantando coisas de amor. Agora falo de amor e é verdade. Agora sim. Enfim sós.