sábado, setembro 23, 2006

Im publicável

Fumar café e tomar cigarros. Nostalgi cafeí cotinas.

Cafetina e libidinosa: ando estranhamente virginiana- ascendente-touro.
De desamarrar dos cadarços, desamorosamente dolorida.

Noite chuva à beça nas cabeças harmônicamente doentes. Musical.

Deixando a vida andar com as próprias pernas, crescidinha que está, agora na segunda década nascimento.

Quantas bandas? Quantos vasos vazios, frases sem cor? Anominal.

Anônima.

Animal.

quinta-feira, setembro 21, 2006

O Elevador

com a colaboração imprescindível de Cristiano Gouveia

Afrouxou o nó da gravata que já o sufocava havia um bom tempo:

dezessete anos, mais ou menos.

Elevador. Térreo.

Encostou a testa no espelho do elevador como quem se abandona e o corpo pendeu vencido pela gravidade dos dias de vento seco e ar abafado que acompanhvam aquela semana.

Terceiro andar.

Triste e seca semana de agosto.

De fato, o mês do cachorro louco nunca havia lhe trazido benefícios, não que fosse supersticioso, o sujeito.

Dependurado pela testa colada no espelho, o elevador levava-o rumo ao apartamento que dividia com um papagaio e um peixe solitário, ambos instalados na lavanderia - assim faziam-se companhia, mutuamente (embora não se possa imaginar que tipo de relação pode estabelecer-se entre espécies tão distantes na escala evolutiva).

Nesta hora do dia, tudo o que se permitia a fazer era deixar-se encostar num dos cantos do elevador após ter libertado o pescoço do nó da gravata, fechar os olhos e não pensar em nada. Absolutamente. Décimo quarto andar era o tempo exato que tinha para se recompor de todo um dia de neurônios, discussões, mediocridades. E como eram bons aqueles vinte segundos! Deliciosa a sensação de deixar-se pender, a cabeça pesar, os olhos irem se acomodando e os pensamentos subindo lá para o teto. Ficava o ruído das engrenagens, estalos no elevador que precisava ser consertado diariamente.

Sexto andar.

A porta abre antes do tempo.

Uma mulher que é só perfume desfila elevador adentro, sobre os saltos-agulhas espremendo-lhe os pés. O cheiro entra de maneira avassaladora e o homem sente-se como se de repente tivesse cheirado um litro de lança-perfume fora de época; salta os olhos tentando entender. Desbaratinado, olhos abertos com dificuldade, custa a tomar consciência de que não estava mais solitário no seu trajeto térreo-apartamento - havia agora uma mulher plantada ao seu lado, de cara para o espelho examinando cuidadosamente as novas rugas que lhe vinham despontando na testa, embaixo dos olhos, ao redor da boca. "Ah, mais essa agora!", era o que ele pensava que ela poderia estar pensando naquele instante. Também o mês de agosto para ela nunca tinha sido muito fortuito, adivinhou.
- Ah, tá subindo?! - perguntou a mulher, com ar entediado.
- Sim. Décimo quarto.
- Hum. - bufou. Perfume doce, um casaco preto que lhe caía estranhamente bem e os olhos contornados por um lápis forte. A sensação peculiar de que era a primeira e última vez que a veria por ali. Não devia ser moradora. Seria a amante de algum velho babão? Uma prostituta de luxo? Ou até mesmo a amiga de uma moradora que também sempre havia chamado a sua atenção dentro do elevador.

Nono andar.

Engraçada era a relação que ele estabelecia com os moradores daquele prédio. Com timidíssimos "ois" e "tchaus", de atravessar a portaria e não ver nunca mais. Parecia que as pessoas simplesmente se dissolviam, se desintegravam cidade afora, e só voltavam a ter consistência ali, naquele espaço gélido, íntimo, que é o elevador. De luz fria e espelho escancarando os defeitos.

Envolvente aquela mulher que atravessava sua vida de dias sequencialmente iguais, numa noite que deveria ser como as outras todas.

Mas ali ele permaneceu, imóvel, olhos fechados, cabeça encontro de espelho. Pra deixar crescer outros sentidos, ver passear o cheiro, o quase-tato da pele da mulher sem nome, estrangeira, sombra, nenhuma mulher, ouvir sons, as batidas cardíacas aceleradas do coração daquela, misturadas com o seu, descompassado.

Décimo primeiro andar.

Quase pode sentir sua mão entre dedos. Quase um convite para o 14º andar, para o apartamento, para o sofá, depois a cama, depois cozinha, mesa, banheiro, loucos, encorpados um no outro. Pra ficar ali, na história, pra se contar ao papagaio sua aventura, beber todas e contar ao peixe certas borbulhas de certo amor.

Décimo segundo andar.

Já podia sentir o gosto do pós sexo, de olhos fechados dentro de certo elevador, dentro de certa mulher, nenhuma mulher, estrangeira. E pensamentos rarefeitos no teto, cheirando pele, suor, fim de um dia imperfeito de gravata apertada quase, quase transformado em noite delírio.

Décimo quarto.

Abre os olhos, quase em agradecimento ao que aquela mulher, estrangeira, proporcionou. Que não estava. Não era. Nenhuma mulher. Sonhos só. Só o “pim!” do elevador gritando aos ouvidos o momento de descer Vagar corredor chave porta trinco abrir e fechar descalçar calçado roupa toalha chuveiro aspirina cama.

Cama para novo encontro com nenhuma mulher.Tratar de assuntos de elevador...

“Sonhos sonhos são.”

domingo, setembro 10, 2006

Até o Fim

Boemia que me suga, leva-me a alma e transporta-a ao paraíso dos que pretendem fugir de si mesmos. Pulmão doído. Tempos nebulosos, esses.
Acordo com sol e durmo nesta embriaguez faminta, insaciável, impaciente que ando. De pulos, aos trancos, sem paciência para o farol vermelho, nem pudor para cantar desafinado no meio da rua. Apegada a novas pessoas e a tristes velhos hábitos. De encher e esvaziar, de não se sustentar, de correr e perder o fôlego rapidinho.
Boemia que me suga, leve-me para passear nos teus braços peçonhentos, sob o céu da chuva ácida, sobre o arco-íris da felicidade clandestina dos outdoors. Me leve para correr nas calçadas vazias e remotas, na selva fria da cidade mórbida, moribunda. Tire-me, morta-viva que tenho estado, deste limbo agridoce enjoativo. Vomite-me para que me renasça limpa, sem angústia que reste para contar a história. A minha história começa quando eu me desamarrei sem querer ser desatada. Quando fui descartada sem mais. E é difícil ir fundo nas coisas porque é difícil relacionar-se com tudo isso que nos cerca. Porque é difícil se doar, deixar doer, roer o osso, triturá-lo em pedacinhos de liquidificador. É difícil deixar-se reduzir, quase impossível.

terça-feira, setembro 05, 2006

Manifesto-desabafo-maniqueísta (eu sei)-a-favor-da-arte

O problema é que eles estavam despreocupados demais, e numa sociedade como aquela, era preciso manter-se produtivo a todo o instante. Lá o ócio não era muito bem visto, muito menos este tal ócio criativo de que falam. O importante era estar servindo ao sistema vigente, não deixando nunca que a grande máquina parasse de girar. Era preciso alimentá-la incessantemente, do próprio suor, das próprias noites mal dormidas e dos próprios filhos mal alimentados. Era importante inscrever-se no Exército ao completar os belos e fortes 18 anos e jurar pela própria bandeira defender aquela pátria que tão bem os acolhia. Lá, quando não se vinha de berço bom e farto, era tudo muito mais difícil, e então as horas dormidas eram menores ainda, e os filhos mais e mais mal alimentados. Também ficava difícil de morar em lugar agradável. O mais aconselhável, em casos de baixa renda, era construir a sua própria casa própria na força do muque e, se muito, com alguns companheiros e tijolos. Senão era papelão mesmo. Ou então podia ser até banco de praça para dormir, amamentar os filhos, fazer as necessidades. Comer, lá, era luxo. Coisa para poucos mesmo. Estudar então, nem se fale.Aos que não se enquadravam muito bem no tal regime, dava-se automaticamente alguns nomes facilmente identificáveis, como louco, marginal, trombadinha, drogado, hippie. Assim ficava mais fácil de controlar. É que lá, quando se dava nome às coisas, era possível exercer uma coisa chamada poder sobre elas. É. Tinha essa coisa chamada poder, lá. Era uma coisa que corrompia os que a possuíam, e ela sempre acabava por estar na mão de poucos. Por coincidência ou não, era sempre na mão daqueles que tinham, em maior quantidade uma coisa chamada dinheiro, que calhava de estar esse tal poder. Não era uma regra absoluta, mas naquele lugar, dinheiro e poder eram quase sinônimos. E o mais engraçado é que essa coisa de poder, dinheiro e tudo o mais, calhava de estar na mão de uma tal minoria privilegiada da sociedade. É. Engraçado isso.Enfim.Eles - aqueles aos quais me referia no início do texto- haviam nascido sob este sistema, e por sorte ou não, inseriam-se nesta tal minoria privilegiada. Portanto tinham frequentado escolas em que se pagava para obter educação (sim, pagavam como se paga um produto qualquer). Foram bem alimentados quando crianças, dormiram em camas quentinhas, fizeram aulas de natação, balé clássico, inglês, futebol, violão. Ganharam carros aos 18 anos e escaparam do exército. Cursaram faculdade pública. Viajaram. Fumaram maconha e tomaram vinhos bons nas belas festas de família. Enfim. Eles. Era uma menina e um menino. Irmãos. Criados juntos, mesma mãe, mesmo pai, mesmo leite, mesmo esperma, mesma cor dos olhos. Apesar de tudo eram bem diferentes.Ele desde cedo integrou grupos de discussão marxista, socialista, leninista. Pensou em pegar em armas e fazer a tal máquina parar de girar à força, embora essa coisa de armas fosse parte fundamental da engrenhagem, e ela rapidamente as absorveria. Sem contar que as armas da máquina eram maiores e mais fumegantes que a dos riquinhos revolucionários. Pois é. Ele passava o dia a falar de socialismo e, ao chegar em casa, a empregada havia sempre preparado para ele um prato diferente.Ela descobriu o teatro muito cedo, não se sabe bem como, mas o que ocorreu foi uma súbita identificação. Súbita e profunda. Quando percebeu que fazia parte daqueles que haviam sido excluídos do grande sistema vigente, era tarde demais. Mas junto com esta descoberta, veio também a de que este tal teatro, e esta coisa chamada arte que havia naquele lugar, eram coisas muito poderosas, prontas para voltarem-se contra a máquina a qualquer instante, se não fossem tão sufocadas pela falta de dinheiro. Era muito perigoso dar dinheiro a este tipo de trabalho. Sim, porque a própria essência da arte possuía seus valores fixados em elementos bem divergentes daqueles predominantes. E mesmo porque, era fácil convencer o resto da população de que a arte estava em segundo plano, e afinal de contas fazia sentido, já que a maior parte da população estava antes preocupada em conseguir sobreviver. Muito mais tranquilo era deixar essas pessoas preocupadas e ocupadas o bastante na tentativa de sobreviver num sistema que dependia delas mas as oprimia- simultaneamente, do que deixar espaço para que se preenchessem de teatro, música, literatura. E aí está mais uma coisa que mantinha-se na mão de uma tal minoria privilegiada, e que portanto, estava fadada a correr atrás do próprio rabo, ad infinitum. Mas esta era uma outra tática daquela engrenhagem poderosíssima. Esgotar a arte nela mesma, sufocá-la, "proteger" dela a população domesticada. Para estes eles haviam reservado um brinde especial chamado cultura de massa, para não quebrar com a velha e funcional regra do panis et circences. Amansar a massa para domesticá-la cada dia mais.De qualquer maneira havia uma coisa até meio de outro plano chamada fé a qual ela se apegava. Uma fé quase que imprescindível para se viver em tempos tão fúnebres, cheios de más intenções. Uma fé ardida de que o novo deveria vir pela arte e em especial pelo teatro, de que era lá que a população-massa-de-manobra talvez encontrasse e resgatasse um sentido maior do que era o estar vivo, fazer parte deste mundo, conviver com outras pessoas, conhecer-se a si mesmo, desalienar-se, motivar-se, alimentar-se de algo que vai além da vida e da morte do dia-a-dia. Numa situação em que estar vivo era morrer um pouco todos os dias. E ir murchando. Secando. Até ficar como asfalto, como tijolo, como banco da praça.Contra o acinzentamento contínuo e crescente, estava a arte. E era com ela que todos deveriam confrontar-se, pelo menos uma vez, durante a dura caminhada nesta estrada escura.