terça-feira, setembro 05, 2006

Manifesto-desabafo-maniqueísta (eu sei)-a-favor-da-arte

O problema é que eles estavam despreocupados demais, e numa sociedade como aquela, era preciso manter-se produtivo a todo o instante. Lá o ócio não era muito bem visto, muito menos este tal ócio criativo de que falam. O importante era estar servindo ao sistema vigente, não deixando nunca que a grande máquina parasse de girar. Era preciso alimentá-la incessantemente, do próprio suor, das próprias noites mal dormidas e dos próprios filhos mal alimentados. Era importante inscrever-se no Exército ao completar os belos e fortes 18 anos e jurar pela própria bandeira defender aquela pátria que tão bem os acolhia. Lá, quando não se vinha de berço bom e farto, era tudo muito mais difícil, e então as horas dormidas eram menores ainda, e os filhos mais e mais mal alimentados. Também ficava difícil de morar em lugar agradável. O mais aconselhável, em casos de baixa renda, era construir a sua própria casa própria na força do muque e, se muito, com alguns companheiros e tijolos. Senão era papelão mesmo. Ou então podia ser até banco de praça para dormir, amamentar os filhos, fazer as necessidades. Comer, lá, era luxo. Coisa para poucos mesmo. Estudar então, nem se fale.Aos que não se enquadravam muito bem no tal regime, dava-se automaticamente alguns nomes facilmente identificáveis, como louco, marginal, trombadinha, drogado, hippie. Assim ficava mais fácil de controlar. É que lá, quando se dava nome às coisas, era possível exercer uma coisa chamada poder sobre elas. É. Tinha essa coisa chamada poder, lá. Era uma coisa que corrompia os que a possuíam, e ela sempre acabava por estar na mão de poucos. Por coincidência ou não, era sempre na mão daqueles que tinham, em maior quantidade uma coisa chamada dinheiro, que calhava de estar esse tal poder. Não era uma regra absoluta, mas naquele lugar, dinheiro e poder eram quase sinônimos. E o mais engraçado é que essa coisa de poder, dinheiro e tudo o mais, calhava de estar na mão de uma tal minoria privilegiada da sociedade. É. Engraçado isso.Enfim.Eles - aqueles aos quais me referia no início do texto- haviam nascido sob este sistema, e por sorte ou não, inseriam-se nesta tal minoria privilegiada. Portanto tinham frequentado escolas em que se pagava para obter educação (sim, pagavam como se paga um produto qualquer). Foram bem alimentados quando crianças, dormiram em camas quentinhas, fizeram aulas de natação, balé clássico, inglês, futebol, violão. Ganharam carros aos 18 anos e escaparam do exército. Cursaram faculdade pública. Viajaram. Fumaram maconha e tomaram vinhos bons nas belas festas de família. Enfim. Eles. Era uma menina e um menino. Irmãos. Criados juntos, mesma mãe, mesmo pai, mesmo leite, mesmo esperma, mesma cor dos olhos. Apesar de tudo eram bem diferentes.Ele desde cedo integrou grupos de discussão marxista, socialista, leninista. Pensou em pegar em armas e fazer a tal máquina parar de girar à força, embora essa coisa de armas fosse parte fundamental da engrenhagem, e ela rapidamente as absorveria. Sem contar que as armas da máquina eram maiores e mais fumegantes que a dos riquinhos revolucionários. Pois é. Ele passava o dia a falar de socialismo e, ao chegar em casa, a empregada havia sempre preparado para ele um prato diferente.Ela descobriu o teatro muito cedo, não se sabe bem como, mas o que ocorreu foi uma súbita identificação. Súbita e profunda. Quando percebeu que fazia parte daqueles que haviam sido excluídos do grande sistema vigente, era tarde demais. Mas junto com esta descoberta, veio também a de que este tal teatro, e esta coisa chamada arte que havia naquele lugar, eram coisas muito poderosas, prontas para voltarem-se contra a máquina a qualquer instante, se não fossem tão sufocadas pela falta de dinheiro. Era muito perigoso dar dinheiro a este tipo de trabalho. Sim, porque a própria essência da arte possuía seus valores fixados em elementos bem divergentes daqueles predominantes. E mesmo porque, era fácil convencer o resto da população de que a arte estava em segundo plano, e afinal de contas fazia sentido, já que a maior parte da população estava antes preocupada em conseguir sobreviver. Muito mais tranquilo era deixar essas pessoas preocupadas e ocupadas o bastante na tentativa de sobreviver num sistema que dependia delas mas as oprimia- simultaneamente, do que deixar espaço para que se preenchessem de teatro, música, literatura. E aí está mais uma coisa que mantinha-se na mão de uma tal minoria privilegiada, e que portanto, estava fadada a correr atrás do próprio rabo, ad infinitum. Mas esta era uma outra tática daquela engrenhagem poderosíssima. Esgotar a arte nela mesma, sufocá-la, "proteger" dela a população domesticada. Para estes eles haviam reservado um brinde especial chamado cultura de massa, para não quebrar com a velha e funcional regra do panis et circences. Amansar a massa para domesticá-la cada dia mais.De qualquer maneira havia uma coisa até meio de outro plano chamada fé a qual ela se apegava. Uma fé quase que imprescindível para se viver em tempos tão fúnebres, cheios de más intenções. Uma fé ardida de que o novo deveria vir pela arte e em especial pelo teatro, de que era lá que a população-massa-de-manobra talvez encontrasse e resgatasse um sentido maior do que era o estar vivo, fazer parte deste mundo, conviver com outras pessoas, conhecer-se a si mesmo, desalienar-se, motivar-se, alimentar-se de algo que vai além da vida e da morte do dia-a-dia. Numa situação em que estar vivo era morrer um pouco todos os dias. E ir murchando. Secando. Até ficar como asfalto, como tijolo, como banco da praça.Contra o acinzentamento contínuo e crescente, estava a arte. E era com ela que todos deveriam confrontar-se, pelo menos uma vez, durante a dura caminhada nesta estrada escura.

Um comentário:

marcio castro disse...

olha outro olhar:

http://ocolecionadordetraquitanas.blogspot.com/2006/09/selva-cidade.html