terça-feira, dezembro 23, 2008

Inescrevível

Sei que sobre experiência de vida se escreve a todo o momento. Tudo são experiências de vida. Relatos, descrições, contos, matérias jornalísticas, romances, poemas, memórias. Escreve-se sempre sobre o dia-a-dia, imagens flagradas na rua, conversas de boteco, filmes ou peças a que assistimos, isso, enfim, a que chamamos vida.
Mas quero hoje escrever sobre algo que vou chamar assim: experiência de morte.
Será que pode?
Sim, estou aqui, meus dedos se movem, meu cérebro funciona, meu estômago ronca - sim, estou viva - mas quero relatar um pouco do que se apresentou para mim na minha experiência de morte e não, não quero gerar expectativas. Não, ainda não sei o que há do outro lado. (Mas agora estou começando a acreditar que deveria ter começado este texto de outra maneira. Assim, só descrevendo o que estou chamando de experiência de morte, sem dar nome, sem começar dizendo que se costuma escrever sobre experiência de vida mas que neste caso eu falaria sobre outra coisa, algo pouco mais incomum mas que é tema de tudo no mundo, ao mesmo tempo).
É o abismo abrindo as suas portas para mim. Quando tenho coragem ele se mostra um pouquinho, quando vem o medo o enjôo toma conta de mim, minha cabeça gira, sinto que estou realmente morrendo. Se esqueço medo corpo Terra gente, enxergo coisas que antes não poderia sequer imaginar. Será que é proibido escrever sobre isso? Será que é escrevível escrever sobre isso? Está difícil. A experiência toda é muito difícil, muito difícil, muito difícil. Me seguro no que me resta: meu ser Sofia, não superior nem inferior a nenhum outro ser, meu ser sabe do seu tamanho, sabe que pode se aguentar - é preciso que eu aguente o meu próprio corpo para que eu continue viva. É preciso morrer assim, essa dor e essa dificuldade, esse abismo me sugando e eu tentando em vão me segurar nos meus sapatos. Preciso me deixar ir, voar queda abaixo e ladeira acima, me entrego Sofia, me entrego ser humano pra voltar melhor, mais corajosa, mais disposta a encarar este mundo de experiência de vida, preciso aprofundar minhas experiências de viva mortal que sou enquanto dura há de ser eternidade.

segunda-feira, dezembro 15, 2008

Materno

Te tiro filho e te tomo mulher. Te bebo, ingiro - indigna do posto Mãe. Mas me esforço - talvez com mãos delicadas demais para me chamar mulher - me esforço por recompensar a tua orfandade. E embalo nos braços um filho com pelos barba cabelos a mamar nos meus seios: secos. Enquanto me mama, me suga, um homem sem fome de filho, com nome de homem, a barba que me machuca a pele fina de menina se fazendo mulher. Te rapto filho e me faço mãe, injusta; um filho que chupo e sequer tive o trabalho de criar. Me chegou pronto, crescido, cheio de pelos e medos pelo corpo todo, crescido dos cuidados da mãe real. A que te nomeou e amamentou sem sentir prazer sequer nos seios, estes sim, cheios de leite e de vida para te dar, para que sobrevivesse ao crescimento e chegasse até mim, assim formado, assim, para me lamber os seios a boca e me chamar de sua mulher. E me disponho, cumprindo um papel roubado da outra - aquela sim, mulher - te amamento de nada, com mamilos vazios e rosados de menina que ainda sou. Enquanto isso fumo, eu a mãe torta, a mãe que pode fumar enquanto dá de mamar, mãe e mulher de um filho homem e pai de mim. Já me chega peludo, cheio de raiva e tesão, os erros da outra - daquela mãe mãe - sou eu quem devo arcar. Não tive a chance nem o trabalho árduo de te educar, mas posso lhe ensinar o ponto onde sinto mais prazer quando me toca, me lambe me roça, eu a mãe que fuma, que se entrega pros seus pelos e medos. Mas nunca te poderei ter pra sempre, já que ela, ela é que sempre o terá, como o pariu filho homem, peludo, barbado, pai de mim.