terça-feira, junho 27, 2006

Retalhos

Não queria soneto, nem banda, nem cupido. Queria percorrer ruazinhas de paralelepípedo rodeadas por casas de tijolos ruivos, com trepadeiras nas grades e gatos siameses sob os arbustos, à espreita. Quando me aproximo para alisar os pêlos frágeis, somem ágeis pelos telhados, feito poetas flutuantes. Paralisados, encaram-me lá de cima através dos olhinhos brilhantes.
Nunca fui o tipo que agrada aos animais.

Estrada afora, noite fria, álcool para circular o sangue. Corro deixando paralelepípedos, arbustos, grades, ruivos e gatos de olhos selvagens para trás.

Olhos embaçam lentamente como se fossem óculos e a noite se faz dia claro de céu e sol, mas o frio é mais ácido que nunca, de penetrar nos poros provocando pequenos e torturantes choques.

Cafés e cigarros empilham-se sobre a pia da louça de anteontem, dando um ar desleixado à casa. Ela samba na sala atiçando os vizinhos, ele se fecha no banheiro para chamar a atenção. "Dei um aperto de saudades no meu tamborim. Molhei o pano da cuíca com as minhas lágrimas..." gritava Clara Nunes do lado de fora da porta.
(to be continued...)

domingo, junho 25, 2006

Insones

Despertar nos momentos insones e ir à janela para observar o movimento improvável da Avenida São Luís, segunda-feira, 2 e meia da mañana. Nas insones horas centrais, o movimento incompreensível da avenida de luz amarelada me atrai e eu busco um binóculo. Dois moleques sentados no meio-fio, em aparente silêncio, numa calma quase estranha para uma Duas-e-meia-da-manhã central, plena segunda-feira, carros esparsos e dispersos. A luz que ilumina os meninos, clareia também uma menininha que anda em círculos ao redor do poste do século XIX, e em seguida entra num fusca preto que parte. Imagino por um curto instante o possível destino do fusca e da criança estranhamente acordada na madrugada da cidade. Já foram. E os moleques amarelados do meio-fio, quietos, compactuam do silêncio deles, da avenida e de mais ninguém. Talvez um pouco meu também. Meu e da insônia que me traz para escrever. Mas entre o não-sono e a insônia, opto por escrever. A cidade e seus ruídos raros da madrugada me fazem companhia na jornada dos que não dormem quando deveriam. Zumbis e crianças no meio-fio, encontram-se, dispersam-se, ruídam-se e compactuam-se no silêncio da São Luís, do centro da cidade que aparentemente ronca.

sábado, junho 24, 2006

Romantismo

Se ainda tivesse coragem de entregar-se para o amor, o imenso pasto do desconhecido, do alheio, do outro que não ela, o faria sem piscar os olhos. E seria fácil. Maravilhoso no início, de doer a barriga, tomar vento na cara, ouvir música apaixonada, de brilhar os olhos. Mas depois... Aos poucos iria ralentando, ofuscando, murchando, até que se esvaisse por completo e virasse só uma cosquinha debaixo do braço. Ah! Então era para lá que ele ia (o amor)? Não queria a descoberta num momento como aquele. Como é que uma coisa tão grande e brilhante podia se reduzir e quase sumir depois de um tempo?
Descobriu também que o amor é como bexiga, que infla e murcha, e precisa de muito ar nos pulmões e sangue circulando nas veias para poder mantê-lo.
Mas como podia vir ele despontando com tanta facilidade por entre os cabelos e a nuca acariciada? Será que era o mesmo amor que nascia de novo, assim, quase sem querer? Sem pensar, sem saber? Então era só de sentir? Era só abrir um espacinho que ele já ia chegando assim?
Não se sabe ainda, desde o mais antigo dos apaixonados, dos tempos que não são nem imagináveis (como sabê-los?) até hoje, como funciona e a que veio esse tal amor. Ouve-se por aí que ele está em extinção. Mas será possível extinguir o amor? Desprover-nos de tal bênção, de tal fé, de tal coração batendo forte? Não será inevitável, o amor?
E eram tantas e todas as questões que ela teve de abandonar o píer onde havia se sentado para encontrar algumas estrelas entre planetas e satélites, para isolar-se num mundo de idéias formuladas, onde o amor fica de fora. E era justamente este que ela buscava em meio a tantos pensamentos que caíam tortos na mente. Acabou pegando no sono sobre o colchonete duro que escolhera para dormir. Os sonhos iam e viam, se faziam fortes num momento, de histórias elaboradas e enredos analisáveis, e noutro, apenas passavam sem deixar grandes marcas: “como o amor”, pensou dormindo.

quarta-feira, junho 21, 2006

Dedicatória

Para todos os meus vivos e mortos. À minha antiga e presente vontade de viver. Vontade de crescer. Àqueles que se fixaram, aos parasitas, aos nojos e tesões. À minha meninice, meu medo, meu veneno. Para os que se aproximam devagar, sorrateiros e me tomam, susto! À tudo o que espero, ao sucesso e ao fracasso. Para o que me dôo e dói, fraca. Para a minha futura força, às transformações maiores, aos diabos e aos heróis. Aos errantes ao acaso, aos que dormem ao léu, sob o véu da cidade suicídio. Aos mortos. Aos semi-deuses, à Zeus, aos Zés... Para aqueles que ficam, sempre eles. Para nós que dormimos e acordamos esperando o dia nascer feliz. Para todos.

vácuo

Tô precisando de ar. Aqui, no vácuo, é asfixiante. É difícil. Não dá para se mexer muito bem. Não dá para receber visitas. Não dá para enxergar o que o vizinho está fazendo. Não tem bicho de estimação. Nem música.
O vácuo não é quente nem frio. É surdo, mudo, escuro. Não é duro. Nem líquido.Não passa novela aqui no vácuo, não tem nem televisão.
É triste e silencioso.
Asfixiantemente solitário, o vácuo. Mistura de buraco negro com buraco de tatu. Sensação de pé enterrado na areia da praia.
Não há pás. Nem castelos. Muito menos pé.
O vácuo é mais ou menos parecido com o nada. Sabe o nada?

Introdução...

Este é para escrever o que não faz sentido, o que não tem a lógica (precisa), o que não sente saudades.
Este é o que aguenta, forte, lúcido: um brinde!
É o que eu não conheço, o que estranho, que em mim se faz ausente.
É o que faz falta por ser deliciosamente proíbido, pecado, o original.
É este que me segue quando não sei pra onde ir. O que me consegue quando sou difícil, se já sou ou já o fui, não sei.
É este o das idéias inacabadas, que não sentem vergonha. O que se expõe, sem medo das avenidas e das palavras que nunca combinam.
Este é o que não sou, onde não vou, onde não estou. É aquele ali, atravessando a rua com os pensamentos sussurrantes. É aquele que procuro quando atravesso a São Luiz, aos trancos e barrancos.
Relance.