quinta-feira, agosto 31, 2006

orgia

Os corpos nus e jogados, manchados de vinho tinto, preenchiam bem o curto espaço da quitenete. Se chegasse alguém de fora naquele momento pensaria ter ocorrido uma chacina, das bem sanguinárias, ali dentro. Na verdade, era bonito de ver aquela cena. Uma composição quase perfeita de corpo largado, bituca e taça de vinho manchada.
Mais nenhum cigarro aceso e todos acometidos por um cansaço insuportável, os corpos não mais dançavam nem se tocavam, agora era só sono que preenchia
o espaço. A luz entrava forte pela janela grande da quitenete sem cortinas e um dos corpinhos começou a querer despertar. Foi vestindo calcinha, calça, sapato, enquanto o frio lhe maltratava os ossos. Tropeçou numa garrafa que fez com que os outros levantassem, rápidos. Entre eles, um silêncio quase absoluto, não fosse a vida real acontecendo lá fora à todo vapor. Mas nos ouvidos ainda ecoavam risadas, música, tosses e gemidos da noitada e tanto. Alguma risadinha sonolenta ainda se mostrou, mas as palavras não se faziam necessárias naquele momento de procurar a meia, vestir a blusa cheirando a cigarro e maconha, tropeçar no cinzeiro, sentindo o gosto desagradável e inevitável da ressaca. O fato é que amanhecia, e toda aquela luz, junto com o sono mal dormido, pareciam varrer dali qualquer dose de romantismo e embriaguez que ainda pudesse ter restado. Havia até um certo incômodo em olhar para os outros.
Os corpos agora vestidos e amassados se dirigiam para a porta, e da porta para o elevador, e do elevador para a rua. Rua.
Vida voltando ao normal , de uma só vez, sem dó.
Há cinco minutos eles eram corpos nus, amontoados e embebidos de vinho.
Agora ele era publicitário, ela atendente de telemarketing, a outra garçonete e o outro escritor. Alguns tchaus e beijinhos comportados.
Os caminhos rapidamente se dividiram, cada um indo cumprir o papel que lhe cabia na sociedade.
Frio doído de amanhecer, rua cheia, e ela seguiu desviando, a pé, até a sua casa, com a frase dita na noite anterior ecoando nos seus pensamentos: "Você me é perigosamente familiar."

quarta-feira, agosto 23, 2006

Por mais que doa, que seja, que fuja.

Ainda que restem um, dois, três caroçinhos de ingenuidade.
E mesmo que anoiteça cedo quando se quer que o dia não acabe nunca.
E que a vida toda ande com as próprias pernas, sem nos causar tanta inquietação.
Por mais que a civilização gere um terrível e eterno mau-e-bem-estar.

Qando não tiver mais soluço para soluçar, e pestana para lapidar.
Como se fôssemos todos patinhos que seguem rumo ao sul, ou gaivotas que vão à pesca, ou ainda, sapos que são engolidos por cobras inofensivas.

Ainda assim. Vale.

Mesmo em pleno inferno astral, ou numa viagem de carro quando o lá não chega nunca. Mesmo que a estante de livros desabe livrando-os todos da ordem decrescente; mesmo sabendo que quem eu quero não me quer e ponto.

Ainda que seja tudo mentira. Ou até mesmo verdade jogada na cara com a intensidade de um soco no estômago.

Mesmo assim. Vale.

Ou quando a lua sorrir mais forte, expulsando do céu qualquer rastro de estrela, tentando por assim dizer, eliminar a concorrência. Ainda que, de cócoras, as coisas não se facilitem muito.

E ainda que a cabeça doa doa doa, ecoa no ouvido um zumbidinho meio mórbido, meio cômico, me dizendo de maneira quase sincera, que as coisas valem ser vividas.


quinta-feira, agosto 17, 2006

Querido Tom

O silêncio gritou nos seus ouvidos e, ao tentar esbofeteá-lo, acabou por acertar a própria orelha e despencou no chão. Salvaram-lhe as mãos, ágeis, amortecendo a queda dura. Despontou um choro baixinho quase mudo, que lhe lembrou de quando era criança e chorava debaixo do cobertor engolindo os soluços, para que ninguém soubesse que estava chorando. O pior é que ele dividia o quarto com o irmão mais velho, e uma vez o Tom até que percebeu tudo e ele ficou com vergonha. O Tom acendeu a luz no meio da noite e as retinas me doeram, enfiei cabeça e tudo embaixo do travesseiro para que ele não visse o meu rosto molhado de lágrima. Mandei ele apagar a luz e me deixar em paz. Ele falou que chorar era coisa de viado, e que esperava que não fosse isso que eu estivesse fazendo. Eu falei "Eu nunca choro". E no final da frase o choro me doía na garganta, estrangulado, preso, quietinho que tinha de ser.
E agora ele estava ali, chorando quieto e sozinho, no meio da calçada, para todo o mundo ver. Os pedestres sérios até que viam, mas não diziam nada, nem uma palavra de conforto para tentar ajudá-lo. De qualquer maneira, não era ajuda de pedestre que ele queria no momento.
Só ela é que poderia salvá-lo. A menina dos olhos-amêndoa que uma vez olhou-o bem no fundo da alma e sorriu, como se lhe descobrisse os segredos e os perdoasse, todos. Ela dizia que não precisava tanto sofrimento, e que mesmo sem amá-lo naquele momento, aprenderia a amá-lo um dia. Há tempos a menina estava querendo se apaixonar, mas infelizmente não era muito ela que conseguia decidir essas coisas.
Ele jogado na calçada e os pedestres o pulavam como se fosse cocô de cachorro. Ele queria tê-la feito se apaixonar, mas infelizmente não era muito ele que decidia essas coisas. E agora não suportava aquele silêncio em plena Avenida da Consolação. Queria ruídos e ônibus e buzinas e motocicletas que lhe ajudassem a distrair o pensamento, mas era só silêncio que pairava, que doía, que atormentava.

É, Tom. Hoje eu tive que chorar. Porque foi insustentável.

terça-feira, agosto 15, 2006

Queria desaparecer por instantes e voltar recém-nascida, maleável, opiniões em aberto, ingenuidade latente. Aí eu iria fazer tudo de novo. E tudo igual. Até chegar a este ponto-encruzilhada-precipício-propício e pensar: queria desaparecer por instantes.

Estive ausentemente doente. Ou seria doentemente ausente? O fato é que estive com a garganta em brasa e uma febre suada. Ficar doente só serve para agravar a melancolia e a solidão de se estar doente. Detesto. Engolindo mel atrás de mel, suco de laranja após suco de laranja, própolis, limão e dá-lhe homeopatia. E após uma boa dose de cama, depressão, dor nos ossos e suor, ufa, melhora-se, um pouco.

"É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte."

domingo, agosto 06, 2006

Destroços

...

estremeci ao arranhar as unhas vermelhas no espelho enevoado pelo vapor de um banho quente. Quando apalpei o pescoço úmido foi difícil encontrar os batimentos cardíacos. Tum... tum-tum...tum... Pulso lento e punhos dispersos sacudiam no ar, como se dançassem em desenho improvável. Como se pela primeira vez eu mal percebesse meus traços num espelho embaçado, comecei lentamente a traçar rabiscos fazendo com que, aos poucos, o corpo fosse se mostrando ali naquele reflexo. Um pouco de queixo. Um canto de sobrancelha. Um mamilo. Um corpo fragmentado e estranho foi aparecendo e se construindo, qual Frankstein de mim mesma. Como se me moldasse num espelho cubista e o corpo não fosse nem mais meu, muito pouco meu, meio caco de telha - caco de vidro.
Pela fresta da porta entreaberta, as gotículas do vapor começavam a se dispersar, e a minha imagem foi se fazendo mais e cada vez mais nítida, até chegar à nitidez tão perfeita quanto um espelho pode oferecer, à imagem e semelhança de nós mesmos. Foi quando apareci inteira só para mim, e incomodei-me estranhamente diante de liberdade tamanha.
Recuei e flagrei o meu cãozinho branco e pequeno e coitadinho: estarrecido. Espionava o meu corpo úmido em cacos, em telhas, em vidros de espelho esparramados pelo chão; pousou as patinhas suaves num estilhaço e deixou rastro de sangue comprido, até a sala. Sangue de cãozinho que nada tinha que ver com meus despedaços: ele não tem culpa de nada.

sexta-feira, agosto 04, 2006

Em caso de incêndios

Constante disritmia entre as batidas do coração e o sangue que circula pelo corpo. Em outras palavras: rebuliço. Ou ebulição – embora já tenha passado da idade.
Apelo para palavras que, mesmo sem combinar muito bem - tortas que saem, torta que ando – aliviam o descompasso eterno entre pensamentos, estômago e mãos. Preciso vomitar palavras numa folha em branco, preenchendo-a de nada e tudo, de ânimo e de pântano.
O que fazer em casos de incêndio interno?
Dêem-me extintores de âmago!


“Me deixe hipnotizado pra acabar de vez com essa disritmia
Vem logo, vem curar teu nego que chegou de porre lá da boemia.”
Martinho da Vila