quinta-feira, setembro 21, 2006

O Elevador

com a colaboração imprescindível de Cristiano Gouveia

Afrouxou o nó da gravata que já o sufocava havia um bom tempo:

dezessete anos, mais ou menos.

Elevador. Térreo.

Encostou a testa no espelho do elevador como quem se abandona e o corpo pendeu vencido pela gravidade dos dias de vento seco e ar abafado que acompanhvam aquela semana.

Terceiro andar.

Triste e seca semana de agosto.

De fato, o mês do cachorro louco nunca havia lhe trazido benefícios, não que fosse supersticioso, o sujeito.

Dependurado pela testa colada no espelho, o elevador levava-o rumo ao apartamento que dividia com um papagaio e um peixe solitário, ambos instalados na lavanderia - assim faziam-se companhia, mutuamente (embora não se possa imaginar que tipo de relação pode estabelecer-se entre espécies tão distantes na escala evolutiva).

Nesta hora do dia, tudo o que se permitia a fazer era deixar-se encostar num dos cantos do elevador após ter libertado o pescoço do nó da gravata, fechar os olhos e não pensar em nada. Absolutamente. Décimo quarto andar era o tempo exato que tinha para se recompor de todo um dia de neurônios, discussões, mediocridades. E como eram bons aqueles vinte segundos! Deliciosa a sensação de deixar-se pender, a cabeça pesar, os olhos irem se acomodando e os pensamentos subindo lá para o teto. Ficava o ruído das engrenagens, estalos no elevador que precisava ser consertado diariamente.

Sexto andar.

A porta abre antes do tempo.

Uma mulher que é só perfume desfila elevador adentro, sobre os saltos-agulhas espremendo-lhe os pés. O cheiro entra de maneira avassaladora e o homem sente-se como se de repente tivesse cheirado um litro de lança-perfume fora de época; salta os olhos tentando entender. Desbaratinado, olhos abertos com dificuldade, custa a tomar consciência de que não estava mais solitário no seu trajeto térreo-apartamento - havia agora uma mulher plantada ao seu lado, de cara para o espelho examinando cuidadosamente as novas rugas que lhe vinham despontando na testa, embaixo dos olhos, ao redor da boca. "Ah, mais essa agora!", era o que ele pensava que ela poderia estar pensando naquele instante. Também o mês de agosto para ela nunca tinha sido muito fortuito, adivinhou.
- Ah, tá subindo?! - perguntou a mulher, com ar entediado.
- Sim. Décimo quarto.
- Hum. - bufou. Perfume doce, um casaco preto que lhe caía estranhamente bem e os olhos contornados por um lápis forte. A sensação peculiar de que era a primeira e última vez que a veria por ali. Não devia ser moradora. Seria a amante de algum velho babão? Uma prostituta de luxo? Ou até mesmo a amiga de uma moradora que também sempre havia chamado a sua atenção dentro do elevador.

Nono andar.

Engraçada era a relação que ele estabelecia com os moradores daquele prédio. Com timidíssimos "ois" e "tchaus", de atravessar a portaria e não ver nunca mais. Parecia que as pessoas simplesmente se dissolviam, se desintegravam cidade afora, e só voltavam a ter consistência ali, naquele espaço gélido, íntimo, que é o elevador. De luz fria e espelho escancarando os defeitos.

Envolvente aquela mulher que atravessava sua vida de dias sequencialmente iguais, numa noite que deveria ser como as outras todas.

Mas ali ele permaneceu, imóvel, olhos fechados, cabeça encontro de espelho. Pra deixar crescer outros sentidos, ver passear o cheiro, o quase-tato da pele da mulher sem nome, estrangeira, sombra, nenhuma mulher, ouvir sons, as batidas cardíacas aceleradas do coração daquela, misturadas com o seu, descompassado.

Décimo primeiro andar.

Quase pode sentir sua mão entre dedos. Quase um convite para o 14º andar, para o apartamento, para o sofá, depois a cama, depois cozinha, mesa, banheiro, loucos, encorpados um no outro. Pra ficar ali, na história, pra se contar ao papagaio sua aventura, beber todas e contar ao peixe certas borbulhas de certo amor.

Décimo segundo andar.

Já podia sentir o gosto do pós sexo, de olhos fechados dentro de certo elevador, dentro de certa mulher, nenhuma mulher, estrangeira. E pensamentos rarefeitos no teto, cheirando pele, suor, fim de um dia imperfeito de gravata apertada quase, quase transformado em noite delírio.

Décimo quarto.

Abre os olhos, quase em agradecimento ao que aquela mulher, estrangeira, proporcionou. Que não estava. Não era. Nenhuma mulher. Sonhos só. Só o “pim!” do elevador gritando aos ouvidos o momento de descer Vagar corredor chave porta trinco abrir e fechar descalçar calçado roupa toalha chuveiro aspirina cama.

Cama para novo encontro com nenhuma mulher.Tratar de assuntos de elevador...

“Sonhos sonhos são.”

2 comentários:

marcio castro disse...

as novas palavras sempre criadas para o dialeto necessário nos textos de cristiano gouveia, e o ambiente inóspito e cheio de possibilidades que acredito ter sido proposto por sofia botelho. valeu.

Vanessa Anacleto disse...

O texto é muito visual, poético e verdadeiro. Como eu disso no meu comentário no blog do Cris, dá um excelente roteiro de curta.
Parabéns!
beijos