sábado, novembro 11, 2006

Fuga número um

Como se partisse para não voltar, olhou as horas no relógio pela última vez. E escovou os dentes com calma. Em cima embaixo atrás, fazendo movimentos arredondados do jeito que a dentista ensinou quando era criança. Tinha sido criança e poucas memórias deste tempo ainda lhe pertenciam. O resto tinha ficado dentro de cada casa que morou, de cada cidade, cada coleguinha de escola, cada boneca Barbie, cada primo, de cada doce de leite.
Agora a idéia era partir novamente. E se fosse preciso deixar as lembranças trancafiadas ali mesmo, o faria. Sairia apenas com a mala das roupas e alguns utensílios especiais (é engraçado como alguns objetos são fundamentais para seguirmos viagem). Até uma foto ou outra ela levaria consigo. "Se um dia as saudades apertarem doídas, é uma solução", pensou.
Olhou o quarto como quem se despede do que um dia foi, mas não houve apego: afeto um dia houve. Fechou a porta de casa e saiu deixando o cãozinho branco esperando por um breve tchau, pelo menos. Nem se virou.

A estrada era dessas que não se vê o fim. Mas em algum lugar ela tinha que dar, já que é esta a função das estradas afora (ligar uma ponta na outra ponta). E a menina caminhou paciente no início, depois faminta e mau humorada, então alegre e exausta, e pessimista do meio para o final. Depois deitou-se um pouco no meio daquela estrada (sem carros, sem vacas, sem bicicletas), e colocou os pés para cima. Fez movimentos de quem caminha pelo céu e cantarolou algumas canções que ocupavam-lhe a memória. Remoeu remorsos e roeu as unhas. Depois colocou-se firme sobre os pés pequenos e seguiu viagem.

Recolheu pedrinhas e lavou-as.
Encontrou um cavalo que batizou de Lulu, mas logo o deixou para trás, pastando calmo no seu ritmo-cavalo.
Pulou rios. "Os riozinhos parecem cortes em carne viva da terra roxa. No lugar do sangue, a água vivinha que lhes escorre pelas veias."- pensou. Ela mesma andava sangrando por aqueles dias, deixando rastros finos pela terra.
Alimentou macacos e passarinhos. Cuidou de pombas feridas por aqueles que as atiravam com suas espingardas de chumbo, por pura diversão.
"O homem é mais profundo que os animais", pensou.

Não viu homem naquela estrada que agora escurecia afoita. E cansada da própria voz, resolveu calar-se. Sentia falta de conversa de bar, de violão, de gente falando alto sem se escutar, das ruas intranquilas da cidade que um dia havia lhe abrigado. Agora a luz que tinha era a da lanterna pequena que carregava consigo. O resto era breu. Uma caverna infinita que se tornava o mundo naquelas noites sem lua.

Quando amanhecia ela já punha-se a caminhar novamente. E o fim, quanto mais perto mais longe se tornava.

( a continuar...)

Um comentário:

marcio castro disse...

que saudade de passear pelas estradas afora junto com estas mulheres de sofia.

beijo menina moça.