sábado, abril 17, 2010

Embasbaque


Abro a porta do elevador e me deparo com um quadro, azul da cor do amanhecer que está ali do lado de fora da janela, o quadro azul encostado na parede. Abro a porta e páro diante do quadro azul. É um presente. Deixaram aqui pra mim. Para que quando eu chegasse em casa, 6 da manhã, já sem distinguir as coisas muito bem, com o dia insistindo em amanhecer na rua, para que eu ficasse ali, embasbacada. E fiquei ali, embasbacada, e não há melhor palavra para aquela sensação.
Ele pintou o quadro, entrou sorrateiro na minha casa e deixou-o encostado ali.
Para que quando eu chegasse em casa eu me deparasse, sem nenhum atenuante, com aquela dor escancarada na minha frente. Aquela dor aguda do quadro azul, do rosto do homem desconfigurado de dor, da mulher, do vermelho.
Nos olhamos por um longo momento, eu e o quadro.
Ele me disse mais coisas do que todas as palavras gastas nos últimos meses entre eu e o seu autor. Ele me disse mais do que todas as letras do alfabeto, todas as palavras de todas as enciclopédias do mundo. Na verdade, ele não disse. Ele gritou. Ele explodiu meus tímpanos, me ensurdeceu, ele me pegou e me virou do avesso.
Embasbacada ainda, pego o quadro em minhas mãos. Ele trêmulo assim. Ele esvaindo se desfazendo. Mas duro. Mas forte. Mas bravo. Eu o acolho. O trago para dentro do meu quarto. Pode passar a noite aí, hoje, falo pro quadro azul. Você tá frágil. Fique aí enquanto precisar ficar.
E o dia já está inteiro claro. E o girassol murchou na minha janela. E as luzes do centro ainda estão acesas. E alguns carros ainda transitam pela rua.

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