quarta-feira, março 10, 2010

Sereinha da Sé

Não que seja menina de rua, mas vive dentro de uma fonte que deixou de ter água há uns bons anos, na Praça da Sé. Dessas meninas - menino que vemos por aí. Mora mesmo ali dentro, por isso é conhecida nas redondezas como a Sereinha da Sé. Quando chove é a desforra. E quando chove muito, a fonte até enche um bocadinho e ela se esbalda brincando de ser a sereia que gosta de imaginar. Sereinha do cabelo curto, que canta nas calçadas durante o dia pra ganhar a vida com uma vozinha chocha - e o povo até que se compadece e lhe descola algumas moedas pequenas. Mas quando chove, aí ela se inspira e bem que solta um vozeirão de menina adulta, de menina mulher que encanta os que tem a sorte de flagrar a cena. Flagrar, porque não é para os outros que ela canta assim, é pra ela mesma, quando se sente feliz e imagina longas madeixas ao invés do cabelinho curto desgrenhado e uma calda linda e verde esmeralda no lugar das pernas. Claro que o seu sonho é conhecer o mar. Como foi parar lá dentro da fonte da Sé, é estória que os outros gostam de imaginar. Cada um tem sua opinião, chute, e outros dizem que sabem mesmo: que ela foi largada ali de bem pequeninha e que não conhece outra vida, outro lugar. Nunca saiu do centro da cidade, de onde conhece cada canto, cada esquina, cada boteco, cada pedinte, cada puta, cada cão sem dono, cada menino de cola, cada poste, cada cuspe, cada avenida, cada ponto de ônibus, cada casa de suco. Mas nunca viu coisa nenhuma diferente de canto, esquina, boteco, pedinte, puta, cão, moleque, poste, cuspe, avenida, ponto e suco. Nunca viu o mar, por exemplo. Nunca viu areia da praia sem ser em capa de revista, nunca viu duna, nunca viu céu despoluído, mata virgem, estrelas no céu nunca nunca viu. Nem imaginar, imaginou. Imaginar como, se não sabe que existe? Aí seria invenção, não imaginação, então ela prefere nem tentar. E se contenta com seu tanque seco, com sua voz murcha, com o fato de ninguém saber seu verdadeiro nome. Se contenta com noite sem lua e com as luzes que nunca a hipnotizaram.
E naquele dia foi ela quem hipnotizou um bigodudo chamado Zeus que surgiu de combi do meio do temporal para levá-la dali pra bem longe. “Quer conhecer o mar, Sereinha?”, perguntou o desconhecido. “Que que você acha, tio?”. E assim, enquanto cantava ia subindo a bordo da combi 1985 do tiozinho do bigode simpático. “Pode fumar aqui, tio?”. “Você pode tudo, Sereinha. Não tá vendo que eu sou a sua salvação. Agora vamos buscar os outros.” Ela nem perguntou nada. Não tinha nada a perder, afinal de contas. Não sentia apego nenhum pela fonte da Sé – é, ela não teria do que sentir saudades. Queria mais era ir ver o mar, e iria mesmo achando que aquele tiozinho vestido de salva-vidas podia muito bem tá enganando ela. Ele parecia inofensivo. Ela tava acostumada com coisa pior. Queria mesmo era andar de combi pela primeira vez. “Tchau Sereinha da Sé” – gritava com a cabeça pra fora da janela, e depois ela abria a boca e deixava a água da chuva entrar. “Agora eu vou ser a grande sereia do mar!”.

Nenhum comentário: