quarta-feira, março 03, 2010

Que agora é assim. Pra valer. Um eu um você. Um aqui outro além. Um acordar só. Um caminhar sem. Uma outra vida que calhou de ser assim. Uma dor que parece que uma mão pegou meu coração e não para de espremer. Uma vontade interrompida. Amor então também acaba? Não que eu saiba. Acaba que são outras coisas que acontecem no meio do caminho. E a gente não planejou assim. E os filhos? E a nossa arte? A nossa parceria acima de tudo? Tudo isso caiu em cima da minha cabeça e eu não to vendo nada muito bem. Tudo tem você. Olho ao redor e absolutmante em tudo você está. Na minha cama. Nas minhas roupas. Meu cheiro. Meu espelho. Meu armário tem suas coisas. Suas fotos na minha câmera. Seus livros na minha estante. Você na minha unha, meu cabelo, meu tornozelo. Você na minha voz na minha pele. No ar, na porra da atmosfera, na fiação elétrica de São Paulo, nas ruas calçadas e avenidas, nos cães, na minha mãe, na minha peça de teatro. Agora é viver com o vazio absoluto pesando sobre minha cabeça.

2 comentários:

ana disse...

um poema do Eucanaã Ferraz:

Via

Eu caminhava nu, sem que você visse.
Pra que você visse, eu caminhava sem.
Você não via. Pra que você soubesse,
eu caminhava nem, sem que você visse,

eu caminhava livre, além do limite de
ser ninguém, sem remo e sem alento,
o andar isento quase de mim mesmo,
num estranho,cansado engano,

sem âncora, no vento, e mais contente.
Nu, livro ao avesso; nu, anel sem dedo;
nu, anel sem dentro; nu, a pedra
bruta; nu, um livro bruto, antes

do acabamento, cimento grosso,
na antemão da cal, da letra, descampado,
como se a mão de alguém me desenhasse,
antiqüíssimo, no dorso de um vaso.

Sem poder ser belo, sem poder ser feio,
coisa-coisa no espaço, no tempo, eu ia.
O sol me reconhecia: eu era o filho
mais novo do boro e do alumínio.

Meu passo exalava o hálito do barro.
As crianças me apontavam, riam.
Tudo se condensava à minha roda.
No entanto, nenhuma flor surgia

nos meus passos: os brejos permaneciam
sáfaros, cobertos de urzes, sem que nada
fosse esquivo, estranho ou intratável,
nenhum recife, navalha ou gesto sórdido.

E pra que se desse a ver, meu silêncio
dizia: cabelo, pelo. Sorri: os anjos de pedra
me acenaram. Eu caminhava sem,
em você, sem que você visse.

roberta disse...

Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

(Paulo Leminski)