quinta-feira, outubro 26, 2006

avesso

Quando entrei a casa estava revirada.
O estrago tinha sido grande e aparentemente irreparável. Irreversível.

Parei um instante.
Porta-retratos em cacos no chão. Paredes pichadas de tinta preta, escorrendo ainda; vasos jogados e terra esparramada; espelhos desfigurados e panelas sem tampa; cinzeiros esvoaçantes e bitucas por todo o carpete. Minhas fotos queimadas. Meus armários esvaziados.
Sentei-me, quieta, num pedaço de mesa que restara. Estava sã. E salva.

Por onde andei? Por quanto tempo estive fora?

Quis chorar mas não pude perder tempo com este tipo de auto-piedade.
Quis desistir.
Quis rir e dançar pelo carpete da casa detruída.
Quis gritar para os vizinhos. Quis ajuda.

Mas não movi um dedo, quase nem respirei. Fiquei encolhida sobre o teco de mesa pensando em como eu pude ter deixado as coisas chegarem a este ponto.
Rabisquei letras num papel e recitei palavras para ninguém. Passei a rabiscar a parede, molhando o dedo na tinta ainda fresca e esparramando para os pedaços que haviam ficado em branco. Desenhei ilhas, florestas, sóis.

Remei pela sala e fui me reencontrando em cada canto. Lembrei da posição usual dos móveis. Ri da posição usual dos móveis. Ri da minha antiga posição dentro daquela casa, dentro da disposiçao dos móveis, dos cômodos, dos cantos. Naquela época eu andava desviando. Eu gostava de fumar perto das janelas e agora eu acendia o cigarro no meio daquilo que um dia foi sala.
E agora era o que bastava.

9 comentários:

Cristiano Gouveia disse...

Tudo é calmaria e furia, furia e calmaria, tempestades para dias ensolarados, caos ordenado...Que eu me organizando posso desorganizar, que eu desorganizando posso me organizar...

Tom Butcher Cury disse...

Genial!
Será que não foi você mesma quem destruiu a casa?

Anônimo disse...

Avesso: Tripas, ossos, tendões, sangue, líquidos, e tantas coisas que ainda não sei o nome... Nos virando do avesso, tudo nos parece feio. Mas esquecemos de que é tudo isso que nos sustenta. Por isso digo: Belo texto e Belo avesso menina!
Abraço!

Anônimo disse...

Parecer nunca é ser. Ou será que é?

marcio castro disse...

pelo avesso desvelo. desvencilho, destruo, e rio.

e do dedo preto de tinta na parede desenho dois sóis numa única folha de papel na escola. e a professora me diz que não pode. Eu rio disso, rio dela, rio por não ver meu colorido sol em dois na parede com tinta preta.

bom passeio pelos avessos reversos do interno e externo de você e de quem seja que for.
até.

. disse...

tudo dança
hospedado numa casa
em mudança


leminski!

Cristiano Gouveia disse...

to esperando coisas novas nessa estrada...

marcio castro disse...

endosso as palavras de gouveia cristiano

Tom Butcher Cury disse...

Se apaixonou e não escreveu mais...